A população negra brasileira e a proteção deficiente de direitos fundamentais.
The Brazilian black population and the deficient protection of fundamental rights.
JORGE LUÍS TERRA DA SILVA
SUMÁRIO: Introdução; 1. Da proteção e da proteção deficiente ou insuficiente de direitos fundamentais; 2. “Para inglês ver”?; 3. “Para brasileiro ver?”; Conclusão.
RESUMO: A ONU instituiu a década compreendida entre 2015 a 2024 como sendo a década internacional do afrodescendente. Ela objetiva intervir no atual quadro, fazendo com que, por meio do acesso à justiça, do reconhecimento de direitos e do desenvolvimento em todas as suas formas, os afrodescendentes espalhados pelo mundo possam ter efetiva inserção nas sociedades onde vivem. Em linha semelhante, surgem os objetivos de desenvolvimento sustentável, pois é inegável que os negros e negras estão em situação de vulnerabilidade em várias partes do globo terrestre. No Brasil, para que sejam cumpridos os compromissos assumidos, devemos analisar se os direitos fundamentais dessa população estão efetivamente protegidos e são efetivamente exercidos. Para tanto, devemos retornar no tempo e compreender os efeitos da longa escravização para toda a sociedade brasileira e, a partir desse ponto, verificar como leis atuais que interessam a esse segmento não são implementadas e respeitadas ou são criadas sem se considerar as possibilidades de modificarem a realidade. É importante eleger questões como educação inclusiva, mercado de trabalho e prática de crimes raciais, verificando se os negros e negras tem seus direitos fundamentais efetivados ou se estamos diante de direitos fundamentais protegidos de forma deficiente. Para tanto, adequado saber como a proporcionalidade pode servir como critério de implementação e de controle desses direitos e se há espaço para que aqueles que militam e estudam sobre os direitos humanos e sobre os direitos fundamentais realizem recorte racial em suas análises e pesquisas. Além disso, é indispensável apontar as mudanças que devem ser feitas no campo do Direito, da Política e da Gestão.
Palavras chaves: direitos humanos – direitos fundamentais – racismo – proteção – Direito – Educação
ABSTRACT: The UN has established the 2015-2024 decade as the international decade of the afrodescendant. It aims to intervene in the current framework, in order that, through access to justice, the recognition of rights and development in all its forms, afrodescendants around the world can have effective insertion in the societies where they live. Similarly, the goals of sustainable development emerge, since it is undeniable that black men and women are vulnerable in various parts of the globe. In Brazil, in order to fulfill the commitments assumed, we must analyze whether the fundamental rights of this population are effectively protected and effectively reinforced. To do so, we must look in hindsight and understand the effects of long enslavement to the whole Brazilian society and, from that point on, verify how current laws, which are of interest to this segment, are not implemented or are not reinforced or else are created without considering the possibilities of changing reality. It is important to elect issues such as inclusive education, labor market and practice of racial crimes verifying if, in fact, black men and women have their fundamental rights guaranteed or if we are facing protected fundamental rights in a deficient form. In order to do so, it is appropriate to know how proportionality can serve as a criterion for the implementation and control of these rights and whether there is room for those who advocate for and study human rights and fundamental rights to include a racial cut in their analysis and research. In addition, it is indispensable to point out the changes that must be made in Law, Politics and Management.
Key words: human rights – fundamental rights – racism – protection – Law – Education
Introdução
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, por meio da resolução número 68/237[1], proclamou a década internacional dos afrodescendentes, compreendida entre 1º/01/2015 a 31/12/2024.
O foco estaria e está na ampliação da cooperação internacional, regional e nacional para que os milhões de afrodescendentes participem de forma igualitária e plena nas sociedades nas quais se encontram, sendo reconhecidos e efetivados os seus direitos sociais, econômicos, culturais, civis e políticos.
Para atingir esse audacioso desiderato, a Assembleia estabeleceu e apresentou um plano de implementação que, até o momento, não gerou sequer debate pelos órgãos estatais vinculados ao combate ao racismo no Brasil.
Cumpre destacar que a Organização das Nações Unidas estabeleceu, em 2.015, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável[2], havendo questões que tocam diretamente com a questão racial brasileira.
Sublinhando que há uma agenda e 169 metas apontando para uma sociedade mundial diferente da atual já para o ano de 2.030 e exigindo mudanças graves nas instituições e na sociedade brasileira, é pertinente reproduzir o que segue[3]:
10.2 Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra
10.3 Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito
16.3 Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos
16.10 Assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais
Nesse sentido, é pertinente examinar se, no Brasil, há proteção efetiva ou deficiente dos direitos fundamentais da população negra. Urge, por via de consequência, examinar e atuar nos mais variados campos com o fito de impedir ou minimizar os efeitos do racismo. Para tanto, como não se pode enfrentar doença sem a premissa de se admitir doente, não se há de enfrentar essa questão sem admitir que não vivemos em uma “democracia racial” e que há parte significativa de nossa população que não tem seus direitos fundamentais plenamente efetivados por conta de sua raça.
No presente texto, não se discutirá sobre os conceitos de direitos humanos, de direitos fundamentais ou de direitos naturais, adotando-se aqueles que seriam os mais aceitos, mas apontando para o fato de que na Constituição brasileira são utilizadas as expressões direitos humanos e direitos fundamentais. Aqui é bom asseverar que os direitos humanos e os direitos fundamentais, em linhas gerais, seriam os direitos naturais positivados em legislação externa ou em legislação interna, respectivamente. Diz-se “em linhas gerais” porque há direitos fundamentais que, consabidamente, não configurariam direitos naturais, tais como o direito às férias.
Os limites de um artigo científico não permitem, sem se cair em infrutífera superficialidade, abarcar a gama de questões sensíveis à raça, sobretudo quando esse marcador social é agregado a outros como o gênero, a orientação sexual, a deficiência física, mental ou intelectual ou a situação socioeconômica.
Em sendo assim, sem se desconhecer a importância de se tratar da mortalidade de negros no Brasil, já que a cada 100 pessoas que sofrem homicídio, 71 delas são negras[4], o escopo desse artigo será tratar da proteção deficiente dos direitos fundamentais da população negra no que concerne ao mercado de trabalho, à educação racialmente inclusiva e aos crimes raciais em decorrência de um combate ineficiente ao racismo no Brasil.
- Da proteção e da proteção deficiente ou insuficiente de direitos fundamentais.
Direitos à proteção ensina SARLET (2.011)[5], com apoio na formulação de Alexy, seriam as posições jurídicas fundamentais que outorgariam o direito de o indivíduo exigir do Estado a proteção contra a ingerência de terceiros.
Em decorrência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, o Estado tem o dever de dar efetividade a esses direitos, protegendo o patrimônio jurídico dos indivíduos de indevidas ingerências dos poderes públicos e de agressões promovidas por particulares ou por outros Estados. Nesse teatro, esse dever gera a obrigação de adotar medidas positivas que garantam e protejam de forma efetiva a fruição dos direitos fundamentais.
Importa consignar que o objeto da proteção é extremante amplo, abarcando precaução e prevenção. Seriam objeto de proteção “tudo que se encontra no âmbito de proteção dos direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana em geral, a liberdade, a propriedade”. Ainda segundo o magistério de SARLET (2.011)[6], os direitos de proteção e os deveres de proteção abrangem os riscos de lesão aos bens e direitos tutelados constitucionalmente e os modos de realização da proteção supradita podem se perfectibilizar por meio de normas penais, de normas procedimentais, de atos administrativos ou, ainda, por uma atuação concreta dos poderes públicos.
Elucidativa é a lição de CANOTILHO (2.008)[7] a seguir transcrita:
Em primeiro lugar, deve distinguir-se entre direito à protecção jurídica e direito de defesa (Abwehrrecht) perante o Estado. O direito à protecção jurídica é uma pretensão que qualquer titular de um direito fundamental pode exigir do Estado que o proteja perante agressões de outros cidadãos; um direito fundamental de defesa é um direito cujo conteúdo se traduz fundamentalmente em exigir que o próprio Estado (poderes públicos) se abstenha de intervenções coactivas na esfera jurídica do particular. Quer dizer: nos direitos à protecção, estamos perante direitos constitucionais que apontam para a necessidade de o Estado conformar a ordem jurídica (exemplo: tipificando como crime as ofensas à vida, ou protegendo os cidadãos contra indústrias poluidoras), de modo a evitar a violação dos direitos dos particulares por parte de outros sujeitos privados. Nos direitos fundamentais de defesa, o cidadão pretende uma abstenção dos poderes públicos.
Cumpre sublinhar que a exigência sempre é dirigida ao Estado, destinatário do dever de proteção contra particulares e, obviamente, no caso do direito de defesa, de não agredir a esfera jurídica dos cidadãos.
É razoável admitir que não se pode previamente definir o modo como o Estado realizará o direito de proteção, pois poderia haver uma série de alternativas a serem consideradas, uma limitação de meios disponíveis e a existência de outros interesses a serem satisfeitos que poderiam, inclusive, estar em rota de colisão, bem como a necessidade de constituir uma escala de prioridades. De outra banda, considerando o caráter normativo do princípio da eficiência, não se pode sequer pensar em ação que não se paute pelo alcance de resultados positivos concretos em decorrência da otimização dos meios disponíveis. Embora seja possível não ser encontrada e efetivada solução ótima, às vezes inviabilizadora da satisfação de outro direito, não se pode empregar esforços e recursos de diferentes naturezas em alternativas incapazes de conduzir ao atingimento de fins de forma satisfatória.
Tal entendimento não inviabiliza o cotejo de interesses e de direitos, sobretudo em uma sociedade extremamente complexa que apresenta a uma estrutura estatal também complexa uma gama crescente de demandas. Ao contrário, o desafio posto aos poderes públicos está em estabelecer critérios justos de atuação nesse cenário.
Socorre o magistério de SARLET (2.011), valendo-se de lição de Canaris, pontuando que haveria três critérios que confeririam legitimidade ao dever de proteção. Esses seriam os seguintes:
a) A lesão, ameaça ou o risco de lesão ao direito fundamental deve ser capaz de afetar o seu âmbito de proteção;
b) A intervenção deve ser necessária, ou seja, o âmbito de proteção do direito fundamental deve ter sido efetiva ou potencialmente atingido por intervenção relevante e, em não raras vezes, ilícita sem se configurar em hipótese que possa ser evitada ou rechaçada pelo lesado;
c) O funcionamento conjunto dos diversos critérios, que devem interagir, impõe que, além dos requisitos mencionados, considere-se a relevância do bem juridicamente tutelado, o peso da intervenção e a intensidade da própria intervenção ou ameaça de violação do direito protegido.
Passível de exame é o nível de satisfatoriedade do cumprimento do dever de proteção, podendo esse ser tido como excessivo ou deficiente. Em síntese, pode a atuação estatal gerar desproporções e essas conformarem antijuridicidade.
Ao cumprir o dever de proteção, o Estado pode afetar desproporcionalmente direito fundamental. O princípio da proporcionalidade, que para alguns doutrinadores seria postulado, isto é, regra de aplicação de outras regras, seria um critério de limitação ou, ainda, um critério de controle da constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que é aplicável também, diga-se de passagem, no caso daquele que eventualmente esteja a lesar direito fundamental de outrem.
Assim como a proporcionalidade pode funcionar na perspectiva da proibição de excesso, ou seja, direito de defesa, pode, por outro lado, servir de critério de verificação se o agir estatal foi deficiente ou insuficiente na proteção de direito fundamental violado ou ameaçado.
A proporcionalidade na atuação estatal de caráter protetivo de direitos fundamentais é bem esclarecida por SARLET (2.011)[8] com esteio em lições de Cristian Calliess:
Com efeito, valendo-nos aqui das lições de Cristian Callies (que sustenta uma distinção dogmática e funcional entre proibição de excesso e insuficiência), uma vez determinada a existência de um dever de proteção e seu respectivo objeto, o que constitui um pressuposto de toda a análise posterior, é possível descrever as três etapas da seguinte maneira: a) no que diz com o exame da adequação ou idoneidade, é necessário verificar se a(s) medida(s) – e a própria concepção de proteção – adotada(s) ou mesmo prevista(s) para a tutela do direito fundamental é (são) apta(s) a proteger de modo eficaz o bem protegido; b) em sendo afirmativa a primeira resposta,, cuida-se de averiguar se existe uma concepção de segurança (proteção) mais eficaz, sem que com isso se esteja a intervir de modo mais rigoroso em bens fundamentais de terceiros ou interesses da coletividade? Em outras palavras, existem meios de proteção mais eficientes, mas pelo menos tão pouco interventivos em bens de terceiros? Ainda neste contexto, anota o autor referido, que se torna possível controlar medidas isoladas no âmbito de uma concepção mais abrangente de proteção, por exemplo, quando esta evolve uma política pública ou um conjunto de políticas públicas; c) no âmbito da terceira etapa (que corresponde ao exame da proporcionalidade em sentido estrito ou razoabilidade, como preferem alguns), é preciso investigar se o impacto das ameaças e riscos remanescentes após a efetivação das medidas de proteção é de ser tolerado em face de uma ponderação com a necessidade de preservar outros direitos e bens fundamentais pessoais ou coletivos.
Em decorrência de disposições constitucionais universalistas, os negros brasileiros são titulares dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, ao desenvolvimento, à liberdade de expressão, à honra, à segurança, à educação, à saúde e a outros direitos fundamentais pertinentes ao Estado brasileiro.
Além disso, há disposições constitucionais que, por razões históricas, econômicas e sociais, podem ser consideradas como mais direcionadas a essa parcela da população brasileira. Essas disposições dizem com a liberdade religiosa, com o combate ao racismo, com a redução das desigualdades, com o ensino da história tendo por esteio as contribuições dos povos formadores da pátria brasileira.
De bom alvitre sublinhar que as violações aos direitos elencados acima não configuram exclusividades atinentes aos pretos e aos pardos, ou seja, aos integrantes da comunidade negra. Todavia, é inegável que esses vivenciam situação de proteção deficiente.
Cumpre consignar que não se está a discorrer sobre mitigações à universalidade dos direitos fundamentais, perfectibilizada no alargamento ou na restrição em sintonia com o entendimento do legislador constituinte. Trata-se de imperativos de realidade que devem ser considerados pelo legislador, pelo jurista e pelos cidadãos brasileiros.
Se não há discussão doutrinária sobre a impossibilidade de a proteção dos direitos fundamentais ser ilimitada ou absoluta, não se aceita que essa possa ser estabelecida de qualquer forma, ou seja, sem um padrão qualitativo mínimo. Nesse sentido, serve a proporcionalidade como critério de avaliação da eficácia protetiva dos direitos fundamentais.
2.“Para inglês ver”?
Em certa medida, as regras, sejam estabelecidas por políticas, por contratos ou por leis, podem configurar expectativas e não certezas de cumprimento.
Em se tratando de leis ou de políticas públicas, sobretudo, ou de ajustes como contratos, termos ou convênios, é obrigação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, informados pelo princípio constitucional da eficiência, ter foco nos resultados e nos impactos das decisões proferidas. Em outros termos, sob pena de não serem gerados efeitos positivos concretos ou de haver perpetuação ou até mesmo ampliação dos efeitos negativos de decisões proferidas, devem eles ter controle efetivo dos processos decisórios próprios e uns dos outros, bem como estarem abertos ao controle social. Frisa-se aqui que ações administrativas, decisões judiciais, ações legislativas, políticas públicas e leis enquadram-se no gênero decisões.
Assim sendo, uma vez que o norte está no emprego adequado dos meios e no atingimento de resultados e de impactos concretos planejados e positivos, ganham relevo as atividades de identificar os stakeholders de cada segmento, de planejar e de estimular a participação no seio dos Poderes, pois são meios de diminuição do grau de incerteza das decisões e de ampliação do de possibilidade de êxito.
Mister que superemos a visão de que bastante é a produção legislativa, independentemente de serem elas em nível constitucional ou infraconstitucional. Elas são em número expressivo no solo pátrio, mas não atingimos eficiência e eficácia em especial no campo da administração pública. Certamente, o Direito e não apenas a Política contribuiu para a constituição desse cenário.
As leis, assim como os planos e as políticas públicas, podem ter e normalmente tem um caráter indutor, ou seja, procuram estimular, induzir ou até impor que as pessoas ou as instituições tenham um comportamento necessário para um sistema ou para uma estrutura cooperativa. Porém, nesse processo, não podem desconhecer imperativos de realidade, características pessoais ou regionais, existência de outros interesses e outros estímulos e, sobretudo, dados e informações. Em síntese, não basta apenas editar lei ou conceber política sem pensar e repensar nos mecanismos que possam gerar a eficácia pretendida ou a ineficácia temida.
Nesse cenário, o cerne aqui é pensar se o combate ao racismo no Brasil tem sido efetivo e se estampar na Carta Política que esse fenômeno é repudiado e que sua prática configura um crime inafiançável e imprescritível sujeito à pena de reclusão surtiu efeito nos campos político, educacional, judicial e social.
No que concerne à população negra brasileira, para que haja um avanço, mister que se retroceda um pouco na história, apreendendo contexto relevante para que, como sociedade que se pretende justa e solidária, bem como direcionada ao desenvolvimento econômico, social e ambiental, possamos bem decidir sobre os fins a serem perseguidos e sobre os meios a serem empregados. Para tal exercício será de extrema valia repisar que consoante o conjunto de concepções constituído por PERELMAN (2.005)[9], atuação justa seria aquela que atribui, em síntese, o que segue:
“1. a cada qual a mesma coisa.
2. a cada qual segundo seus méritos.
3. a cada qual segundo suas obras.
4. a cada qual segundo suas necessidades.
5. a cada qual segundo sua posição.
6. a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.”
A primeira concepção abrigaria a ideia de tratar todos de forma igual, ou seja, sem considerar nenhuma particularidade que tornasse alguém diferente. Seria, com efeito, a única noção “puramente igualitária” e não exigente de proporcionalidade como as demais.
Seria tida como a irrealizável, no que pertine à justiça concreta, servindo apenas como ideal do qual se pode tentar aproximação na medida do possível. Poderia essa noção, por outra mão, conduzir à conceituação de uma justiça formal.
A justiça formal tem como cerne a igualdade como forma de evitar privilégios dentro de uma mesma categoria essencial. Ela se contrapõe, portanto, à justiça distributiva, que, com base na igualdade, “leva em conta capacidades e esforços individuais na atribuição das vantagens”. Essa, por seu turno, afasta-se da justiça comutativa que não se ocupa com a vida individual tomada em conjunto, mas, sim, com o estabelecimento da igualdade em cada ato jurídico.
No esforço de definir a justiça material, PERELMAN (2.005)[10] destaca um elemento comum em todas as fórmulas de justiça material. A sua construção perpassa por questionamentos sobre a necessidade ou obrigatoriedade de tratar todos igualmente e, em caso de haver distinções, quais os critérios para definir as que seriam relevantes e suas consequências.
Nesse trilho, o doutrinador chega à ideia de característica essencial e essa seria aquela que “permite agrupar os seres numa classe ou numa categoria, definida pelo fato de seus membros possuírem a característica em questão”. Dessa arte, esses indivíduos comporiam a mesma categoria essencial.
Justiça formal ou abstrata seria “um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”. Já o dissenso das fórmulas de justiça concreta está no fato de que cada uma dela considera uma característica diferente como a única que se deve levar em conta na aplicação da justiça.
A segunda concepção de justiça material, destaca características pessoais e esforço também pessoal, denominadas de mérito. PERELMAN (2.005)[11] sublinha que não basta que as pessoas tenham mérito, sendo necessário que tenham mérito no mesmo grau para serem integradas na mesma categoria essencial. Aqui já não se fala em justiça igualitária, mas sim proporcional a esse mérito.
Aqui é bom frisar que mérito seria o “valor moral intrínseco do indivíduo” e “esse será o critério do juiz, cego a todas as outras considerações”.
Importante não confundir, como normalmente ocorre quando se está a discutir sobre sistema diferenciado de ingresso em estabelecimentos de ensino ou no serviço público, a segunda concepção com a que virá a seguir.
A terceira noção de justiça concreta também exige um tratamento proporcional, mas “o critério já não é moral, pois não se leva em conta a intenção, nem os sacrifícios realizados, mas unicamente o resultado da ação”.
Essa concepção afasta-se do irrealizável “por levar em conta, o mais das vezes, elementos sujeitos ao cálculo, ao peso, à medida”. Nessa concepção, inspiram-se o pagamento de salário dos operários por hora trabalhada ou por peça produzida, bem como “os exames e os concursos em que, sem se preocupar com o esforço fornecido levam-se em conta apenas o resultado, a resposta do candidato, o trabalho que apresentou”.
A quarta concepção é a que toma como essencial “os sofrimentos que resultam na impossibilidade” de a pessoa “satisfazer suas necessidades essenciais”. Por isso, configura uma tentativa de diminuir esse sofrer.
Essa concepção exige a definição de critérios formais relativos a essas necessidades. O autor assevera que se deve levar em conta um mínimo vital que envolva necessidades básicas individuais e familiares.
Essa concepção, “impondo-se cada vez mais na legislação social contemporânea, pôs em xeque a economia liberal em que o trabalho, assimilado a uma mercadoria, estava sujeito às flutuações resultantes da lei da oferta e da procura”. Por via de consequência, dela decorrem a proteção ao trabalho e ao trabalhador, a definição de um salário mínimo, as legislações referentes à pessoa idosa, à criança e à pessoa enferma, ou desempregada, etc.
A quinta concepção diz com o tratamento diferenciado às pessoas em razão de pertencimento a uma ou a outra categoria determinada. Essa concepção é constantemente defendida pelos beneficiários, que fazem prevalecer a força política ou institucional que possuem.
No exército, por exemplo, há tratamento diferenciado entre oficiais e praças, regrado em razão da posição dentro na instituição.
Por fim, a sexta concepção é tida como de justiça estática porque baseada na ordem estabelecida. As anteriores são tidas como de justiça dinâmica pelo fato de poderem, ao menos potencialmente, modificar a ordem e as regras que a determinam.
Por essa concepção, a pessoa encarregada de a aplicar não está livre para eleger a concepção de sua preferência. Portanto, “a classificação, a distribuição em categorias essenciais, é-lhe imposta e ele deve obrigatoriamente levá-la em conta. É essa a distinção fundamental entre a concepção moral e a concepção jurídica de justiça”.
PERELMAN (2.005)[12] impôs-se o desafio de pesquisar o que há em comum entre as diferentes concepções da justiça. Aqui, nesse breve texto, suficiente é identificar concepções de justiça que permitiriam examinar as escolhas tomadas quando da edição da denominada de Lei dos Sexagenários.
Não é necessário descrever detidamente o momento vivenciado em nossa pátria, pois bastante é trazer detalhes que permitam demonstrar a desproteção dos direitos naturais da quase totalidade dos homens negros e das mulheres negras há pouco mais de 130 anos em solo brasileiro.
Em verdade, o conjunto de leis produzidas visava à manutenção do escravagismo. Daí decorre a alcunha histórica de leis “para inglês ver”, pois a Inglaterra, após longo e lucrativo comércio transatlântico de escravizados, passou a proibir tal atividade tendo em vista seus outros interesses comerciais.
As deliberadas tergiversações, configuradas em forma de leis, geraram diplomas legais que tinham como objetivo principal falsamente demonstrar intenção e esforço no combate progressivo à escravização humana, bem como abertura para os novos tempos econômicos.
A lei em comento, portanto, decorre de uma discussão acirrada ligada à transformação de uma economia calcada no trabalho do escravizado para a baseada no trabalho livre. O ponto nodal do debate versava sobre a indenização para os proprietários de escravizados e sobre a concessão de liberdade para esses últimos.
Havia uma conjugação de interesses que conduziu à prevalência do legislativo no processo decisório sobre a abolição. Aos abolicionistas, aos escravagistas, em especial aos grandes produtores de café e aos próprios membros da Assembleia Nacional, esses últimos sob a alegação de que o debate poderia levar à subversão da ordem pública, por razões diferentes, interessava que esse poder capitaneasse o processo.
Perceba-se que, no momento histórico identificável, não se estava diante de leis descumpridoras do inerente caráter indutor das legislações, mas sim de leis que continham o firme propósito de retardar mudanças que já tinham ocorrido em numerosos pontos do globo terrestre. Sim, o Brasil foi o último país que aboliu a escravatura.
A celebração de atos internacionais entre Brasil e Inglaterra seria, pois, o marco da ilegalidade da escravidão no Brasil, que foi reforçada por leis nacionais também descumpridas. Em outros termos, muitos dos seres humanos trazidos forçadamente para o Brasil o foram em descumprimento de normas vigentes à época.
Antes de tudo, reproduz-se trecho de obra premiada e aprovada pela Resolução Imperial de 9 de Fevereiro de 1.861 para uso das Faculdades de Recife e São Paulo, intitulada Direito Administrativo Brasileiro[13]:
Pela Conv. de 23 de Novembro de 1826 obrigou-se o Brasil para com a Inglaterra a não consentir que os seus súditos exercessem o tráfico de africanos 3 anos depois de trocadas as ratificações da mesma convenção, sendo este tráfico declarado pirataria.
Para tornar efetivas estas estipulações, promulgou-se a lei de 7 de novembro de 1831, que declarou livres todos os escravos que entrarem no território ou nos portos do Brasil, vindos de fora, com exceção dos matriculados nas equipagens das embarcações, e dos que fugirem do território ou embarcação estrangeira; impôs aos importadores a pena do art. 179 do Cód. Criminal (prisão por 3 a 9 anos e multa correspondente à 3ª parte do tempo), a multa de 200$ por cabeça de escravo importado, além da obrigação de pagar a despesa de reexportação para a África; definiu quais são os importadores africanos; e ofereceu o prêmio de 30$000 por cabeça a quem der notícia ou apreender, ainda sem mandado judicial, os ditos africanos ilicitamente importados.
Dito isso, retorna-se ao trilho original, ou seja, às considerações sobre a lei dos sexagenários sobre a qual, de modo extremante sintético, pode-se dizer que acabou por promover o seguinte:
a) os escravizados que atingissem 60 anos ou mais anos de idade seriam libertos;
b) a libertação também ocorreria se houvesse inexistência ou omissão na matrícula dos escravizados(registro a ser procedido pelo proprietário de escravizado), por fundo de emancipação (fundo com recursos provenientes de taxas e rendas específicas, adicionais acrescidos aos impostos gerais, excetuando-se o de exportação, e títulos da dívida pública emitidos para tanto, que deveria custear a gradual emancipação de escravizados, a colonização e a conversão do trabalho escravo em atividades econômicas definidas pela lei)[14] ou por transgressão de domicílio (quando o escravizado era levado de uma província a outra sem autorização);
c) a indenização para o proprietário, que deveria ser feita pelo próprio liberto de 60 anos ou mais, obrigado a prestar serviços aos seus ex-senhores por três anos ou até completar 65 anos.
A olhos desavisados pode parecer que, em se concedendo a liberdade aos escravizados naquele cenário do não tão longínquo ano de 1.885, não haveria crítica severa a fazer pelo prisma da justiça do ato. A questão pouco abordada é que os brasileiros somente começaram a ter esperança de vida próxima aos 60 anos quase 100 anos depois. Melhor dizendo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o homem brasileiro, sob outras condições sanitárias, ao nascer, esperava viver 59,6 e a mulher brasileira, também nesse quadro mais favorável, 66,0 no ano de 1.980. Tendo em conta que a média para ambos os sexos de esperança de vida em 1980 era, por conseguinte, de 62,7, destaca-se que os escravizados que tivessem 60 anos ou mais deveriam trabalhar por três anos ou até os 65 anos de idade para indenizar os proprietários de escravos[15].
Assim, travestida de justiça segundo as necessidades de uma categoria essencial, no caso, os escravizados, em verdade, aplicou-se a concepção de justiça baseada na posição, atendendo-se aos interesses de uma categoria essencial que tinha posição de supremacia, a elite vinculada à cafeicultura.
A liberdade é um direito natural, vinculado ao contexto moral, que, no que tangia aos negros escravizados nascidos no Brasil, não estava positivado na Constituição de 1.824. Pelo alinhamento teórico já aduzido, para essa população não seria, em 1.885, um direito fundamental. Porém, havia legislação, no caso, a referida convenção celebrada com a Inglaterra e a lei que lhe dava aplicabilidade no Brasil, que reconheciam, ao o positivar, o direito à liberdade nas hipóteses outrora externadas. Para os escravizados abrangidos por essas legislações e para seus descendentes, poder-se-ia falar em violação ao direito humano à liberdade.
Por via de consequência, no ver dos escravizados, a justiça concreta haveria na medida em que se lhes reconhecesse o direito à liberdade. Dessarte, uma vez que a expectativa que esse reconhecimento fosse para toda a categoria restou frustrada com a imposição de um critério etário e de previsão legal vinculada à existência de recursos financeiros em um fundo ou ao cometimento de ilegalidades por parte dos proprietários de escravizados, seria inevitável que percebessem essa situação como injusta.
Escravizados eram pessoas às quais se negava também o exercício do direito à liberdade, compelindo-se-os a executar trabalho sem remuneração. A idade do escravo adulto não seria fato relevante no exame de suas situações política e jurídica até o advento da lei em comento já que não seria hipótese de aplicação da Lei do Ventre Livre. O atingimento da idade de 60 anos configurou-se como critério arbitrário dificilmente atingível pelo beneficiário. Portanto, houve uma escolha causadora de injustiça e impeditiva da satisfatoriedade da necessidade de liberdade por intermédio de lei.
Por outra mão, a estipulação da idade para a emancipação também poderia ser vista, dentro na categoria essencial, como um critério reconhecedor do mérito, ou seja, do nível de sacrifício imposto. Em outros termos, a idade poderia ser tida como uma presunção de imposição de maior sacrifício individual em decorrência do maior tempo de exposição à violação de direitos. Mesmo sob esse prisma, por haver condições diferentes de submissão ao período escravagista, estariam os escravizados em graus diferentes de sofrimento que, em verdade, seria inavaliável.
Importante consignar que o ser humano persegue, e já perseguia naquela época, não apenas a liberdade, mas também a igualdade e as condições mínimas de existência digna correspondentes ao seu tempo. Nesse sentido, a falta de previsão de pagamento de indenização aos libertos, cumulada com a obrigação de eles, por meio de disponibilização por mais três anos de sua força de trabalho, indenizarem os senhores, sob a ótica da justiça à luz das necessidades, configurariam estado de injustiça.
Oportuno sublinhar que parte do fundo de emancipação destinava-se, em porções iguais, a estimular a colonização, a emancipar escravizados e a libertar escravizados de lavoura e mineração cujos senhores quisessem converter em livres os estabelecimentos mantidos com escravizados. Perceba-se, pela mesma noção de justiça, a ocorrência de injustiça, pois um terço dos valores do fundo serviriam para transportar os substitutos remunerados dos escravizados não indenizados e despreparados para os então novos tempos.
Os senhores de escravizados viam que as mudanças até poderiam trazer vantagens para o país ou, ao menos, seriam atos necessários diante de pressão interna e externa. Todavia, certamente, não queriam e não custearam a transformação. Nesse quadro, tendo-se por norte a concepção de justiça concreta de alcançar a cada um em sintonia com a sua posição, a postergação da abolição, o custeio da transformação do trabalho escravo para o trabalho livre por parte do fundo de emancipação, bem como a indenização paga pelos libertos, é crível que os senhores de escravizados considerem que tenha havido justiça.
Dentre as leis integrantes do período identificado, tomamos como exemplo a Lei número 3.270, de 28 de Setembro de 1.885, conhecida como Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe[16]. Poder-se-ia ter utilizado a lei número 2.040 de 28 de setembro de 1.871[17] – a “Lei do Ventre Livre” – com o mesmo propósito de demonstrar o conjunto de injustiças promovidas durante e após a escravização no Brasil.
O retroceder histórico e a escolha de uma lei para tratar de forma mais detalhada é estrategia para sublinhar como o nosso passado foi gerador de um persistente racismo que teve como instrumento inclusive a lei.
No ponto seguinte, mostrar-se-á como leis atuais e vinculadas ao campo da igualdade racial continuam sendo ineficazes, gerando-se desproteção aos agora existentes direitos fundamentais das mulheres e dos homens negros.
3. “Para brasileiro ver?”
O sistema escravocrata era e é inerentemente injusto, pois elege critérios arbitrários para conceder direitos a um grupo de pessoas e, simultaneamente, negar a outro. Esses critérios podem ser a raça, o fato de ter havido prévia perda em uma guerra ou outro imposto por aquele que esteja em posição de impor a sua vontade ou sua visão de sociedade.
A escravização negra no Brasil produziu e sustenta marcas graves de difícil superação para o seu corpo social. Tanto que as transformações gradativas e de cunho legislativo parecem não surtir os efeitos necessários em diversos ambientes e aspectos.
O fato é que as leis que compõem o período prévio à abolição da escravatura e a situação sócio-política gerada por uma política estatal de violação extremada de direitos para os negros escravizados, constituiu injustiça intertemporal, ou seja, produziu reflexos em numerosos campos e contextos ainda não enfrentados de maneira eficiente e eficaz pela sociedade brasileira. Diante disso, os cidadãos negros brasileiros vivenciam quadro de proteção deficiente de seus direitos fundamentais.
O entusiasmadamente anunciado estatuto da igualdade racial, instituído pela lei número 12.288/2.010, parecendo remontar as leis do período mencionado acima, não gerou efeito positivo concreto apesar do tempo transcorrido.
Aliás, bom destacar dois de seus artigos.
O parágrafo 3º do artigo 39 estaria vocacionado a intervir no mercado de trabalho estimulando a responsabilidade social corporativa, pois assim dispõe:
Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.
§ 1o A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para a população negra.
§ 2o As ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.
§ 3o O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado.
Sem dúvida, a responsabilidade social corporativa é caminho a ser fortemente estimulado e trilhado, em paralelo com a adoção de cotas relativas aos cargos públicos, empregos públicos e funções delegadas. Aliás, a empresa é capaz oferecer mais vagas no mercado de trabalho e de tornar permanente e natural a inserção e do negro em searas de maior poder econômico e social. Essas ofertas, pelo menos no início, estariam ligadas ao interesse de agregar à marca uma imagem de efetivadora de direitos e de respeitadora da diversidade. Mais adiante, poder-se-ia perceber que instituições diversificadas são mais competitivas e mais aptas a se adaptar às diferentes realidades, a enfrentar adversidades e a encontrar soluções para os problemas enfrentados pela sociedade.
Evidentemente, o dispositivo legal está a exigir regulamentação, pois não há definição quanto à espécie de incentivo, ao número de beneficiários da iniciativa da empresa ou ao seu período mínimo de duração. O fato é que, enquanto não ocorrer a regulamentação do Estatuto, que prevê incentivos fiscais para as empresas que por convicção de seus dirigentes, por interesse mercadológico ou por identificação de oportunidade auxiliem no enfrentamento do racismo no mercado de trabalho, haveremos de constatar diferenciações acentuadas no que pertine à empregabilidade e aos níveis salariais.
Ressalta-se que os certames nos quais foram instituídos sistemas de reserva de vagas sensíveis à raça no Brasil o foram e o são com base em outras leis e não no estatuto supradito. Sublinhe-se que foi necessário, com o fito de evitar incessantes e desgastes discussões, ajuizar ação declaratória de constitucionalidade (tombada sob o número 41 e que foi julgada em 08.06.2017) relativa à lei 12990/2014 que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta do Executivo e que é aplicável também aos outros Poderes.
Nessa quadra, não surpreendem os dados reveladores de baixos níveis de empregabilidade, de diferenças salariais e de baixa inserção nas posições de gestão e de comando nas 500 maiores empresas brasileiras.
Pesquisa realizada pelo Instituto Ethos com a cooperação do Banco Interamericano de Desenvolvimento de 9 de Dezembro de 2.014 a 28 de Maio de 2.105 traz o perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil[18]. Informa a instituição que foram consultadas 500 empresas, sendo que 117 enviaram respostas. Afirma, ainda, que já foram realizados trabalhos semelhantes, sendo o anterior do ano de 2.010 e que a escolha das empresas não foi aleatória, identificando que as eleitas exercem papel de liderança e de referência para o mercado.
Consoante a pesquisa, 88% das empresas que responderam ao questionário não tem política afirmativa de cunho racial. Daí decorre que os negros estariam em 35% das vagas do quadro funcional, em 25,9% das vagas de supervisão, em 6,3 das vagas de gerência, em 4,7 dos quadros executivos e 4,9% dos conselhos de administração.
O DIEESE faz consolidação de dados pertinentes a cinco regiões metropolitanas brasileiras, pesquisando sobre ocupação, desemprego, qualidade das relações de emprego e níveis salariais. No que concerne ao desemprego, oportuno reproduzir o que consta no trabalho denominado “Inserção produtiva dos negros nos mercados de trabalho metropolitanos” de novembro de 2.016:
“Historicamente, os negros convivem com patamares de desemprego mais elevados, mesmo nas regiões onde sua presença é expressiva, como Salvador, Fortaleza e Distrito Federal.
A taxa de desemprego dos negros apresenta diferença expressiva principalmente em Porto Alegre, onde a taxa desse segmento é superior a dos não negros em 4,5 pontos percentuais, seguida de Salvador (3,4 p.p), São Paulo (2,9 p.p), Distrito Federal (2,0 p.p) e, com menor distância, em Fortaleza (0,6 p.p).
Entre 2014 e 2015, as taxas de desemprego cresceram expressivamente em Porto Alegre e São Paulo e, de modo menos intenso, em Fortaleza e Salvador, atingindo os diferentes segmentos da força de trabalho. A desagregação dos dados pelos grupos de cor/raça mostra que o aumento do desemprego ocorreu em percentual maior para os negros em Fortaleza, São Paulo e, em menor medida, em Porto Alegre. Apenas em Salvador a taxa de desemprego aumentou mais para não negros. Considerando o sexo, a taxa de desemprego elevou-se mais para os homens que para as mulheres, em todas as regiões analisadas. Entre elas, exceto na região de Salvador, as taxas aumentaram mais para as mulheres negras, no período em análise.”
A Fundação de Economia e Estatística (FEE) gaúcha faz levantamento semelhante ao referido acima e, integrante do mesmo sistema, o repassa ao DIEESE. Importante assinalar que, referindo-se à região metropolitana de Porto Alegre e à queda do rendimento médio dos trabalhadores, uma vez mais, evidencia-se a existência de diferenças salariais entre negros e não negros:
“Entre 2014 e 2015, constatou-se redução dos rendimentos médios reais tanto para negros (4,5%) quanto para não negros (7,8%). Em termos absolutos, o rendimento médio dos negros reduziu de R$ 1.697 para R$ 1.620; para os não negros, a retração nos rendimentos foi mais intensa, de R$ 2.343 para R$ 2.160, no mesmo período.”
Definitiva e elucidativa é a apresentação do trabalho do DIEESE identificado acima:
“A análise das informações da Pesquisa de Emprego e Desemprego – Sistema PED, realizada por meio do Convênio entre o DIEESE, a Fundação Seade, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE/FAT) e parceiros regionais no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Fortaleza, Porto Alegre, Salvador e São Paulo – mostra que a redução das desigualdades raciais vivenciadas ao longo das últimas décadas, em um contexto de relativa melhora do mercado de trabalho, não foi suficiente para promover a equidade de valoração do trabalho exercido pelos negros em relação aos não negros. O recente processo de estruturação do mercado de trabalho brasileiro trouxe melhoria nas condições de inserção produtiva promovendo redução da diferença dos níveis de desemprego por raça/cor. Entretanto, entre 2014 e 2015, a situação mudou significativamente e restrições ao crescimento econômico trouxeram a recessão e o desemprego para a vida dos trabalhadores e trabalhadoras. As taxas de desemprego cresceram nas regiões metropolitanas pesquisadas pela PED, na maioria delas, com impacto maior sobre a população negra.
A dinâmica do mercado de trabalho expressa os padrões vigentes nas relações raciais e de gênero na sociedade brasileira. As diferenças salarial e ocupacional entre negros e não negros estruturam as oportunidades de vida desses diferentes grupos populacionais na sociedade brasileira.”
Restam evidentes as dessimetrias com as quais se deparam negras e negros no mercado de trabalho e com a insuficiência da proteção nesse campo.
Os reflexos do racismo também se traduzem na forma de proteção alcançada aos integrantes da comunidade negra que sofrem violações na forma de crimes raciais.
Sabe-se que ao Estado moderno não cabe apenas impedir a violação de direitos, cabendo-lhe promovê-los e criar ambiente propício para que pessoas e entidades públicas e privadas também os promovam. Nesse cenário, é que devem ser compreendidos os crimes raciais, sublinhando-se que, tecnicamente, a consideração de condutas como criminosas é a última alternativa.
Dessa arte, tem-se que são insuficientes, nos planos prático e jurídico, à luz da Constituição Federal, as disposições do parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal e da Lei Federal número 7.716/89. Em verdade, elas geram situação que não tem permitido a diminuição de práticas odiosas com motivação étnico-racial, pois criam atmosfera de que não há sanção para esses agires.
Normalmente, a crítica recai sobre os integrantes do sistema de justiça e de segurança. Todavia, é de se reconhecer que os instrumentos que se lhes alcançam não são de boa qualidade.
Numerosas vezes, discute-se, revelando-se frustração, o motivo de certas condutas serem tidas como injúria racial e não como crime de racismo. Ora, ao fazer a crítica, evidencia-se que o crime de racismo seria mais grave aos olhos de todos. Se assim é, não deveriam os dois ter idêntica cominação de pena, ou seja, reclusão de 1 a 3 anos e multa.
De bom alvitre sublinhar que gera-se aparente conflito entre o artigo 20 da Lei 7716/89 e o parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal. Em síntese, pode-se dizer que, com esteio em decisões judiciais, que ofensa que se limite à pessoa da vítima, é tida como injúria racial e aquela que atinja um grupo étnico, mesmo que dita a uma pessoa, seria tipificada como racismo. Portanto, no primeiro grupo, enquadram-se as ofensas “macaco” ou negro safado”. Se a ofensa, dirigida a uma pessoa, fosse “aqui não é lugar de negro” ou “é bem coisa de negro”, estar-se-ia diante do segundo grupo.
Na medida em que se torna mais relevante o xingamento dito e não a intenção do agente, permite-se subjetividade geradora de insatisfação e de sensação de impunidade, pois, em não raras vezes, faz-se incidir a norma extraível do Código Penal. Com isso, não se estaria na presença de crime inafiançável e imprescritível, mas sim de crime que permite a fiança e que prescreve, em tese, em oito anos. Acrescente-se que há estudos técnicos que dão conta de que as absolvições superam o patamar de 69% (Relatório Anual das desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010 – LAESER).
Em verdade, o ânimo de injuriar não se coaduna com o da prática de racismo por meio de expressões racistas. Em verdade, na medida que se utiliza expressão de cunho racista, não se está diante de injúria. Está-se diante de atitude mais grave consoante o texto constitucional do que o ataque à honra, impondo resposta mais severa. Em outros termos, quem chama outro ser humano de “macaco”, “carvão”, “negro safado” ou negro sujo”, não está a injuriar, está a tratar a vítima com desigualdade, pretendo colocá-la em patamar inferior ao seu em decorrência de serem de cores ou de etnias diferentes. O agressor está a regredir no tempo e no estado civilizatório. Nesse teatro, o parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal está em dessintonia com a Carta Magna, é gerador de conflito aparente e, desnecessário, conduz à sensação de impunidade, que é maximizadora de problemas. Além disso, apesar de a reprovabilidade ser maior no caso em comento, utilizam-se práticas jurídicas atinentes à injúria comum como a retorsão e a injusta provocação da vítima.
A solução para condutas que tenham como móvel o racismo, isto é, que tenham como intenção criar desvantagem, gerar ou ampliar desigualdade, negar oportunidade, impedir ou dificultar o exercício de direito ou o cumprimento de dever em decorrência da cor ou da etnia da vítima está na radical reforma da lei 7.716/89 ou na inclusão dos novos tipos que nela constariam no corpo do Código Penal. Aliás, é de se ter atenção às lições dos estudos sobre discriminação indireta, pois, talvez sejam mais frequentes e mais dificilmente enfrentadas numa pátria que ainda vive sob o mito da “democracia racial”.
Sem desdouro aos esforços empreendidos na confecção e na articulação para aprovação da Lei 7.716/89, é forçoso mencionar atecnicidades, à guisa de exemplo, que devem ser afastadas.
Na mencionada lei, referem-se os locais nos quais as condutas deveriam ser tipificadas como crime de racismo. Tal proceder é desnecessário e gerador de omissões graves. E se, por exemplo, um médico negasse atendimento à pessoa enferma por questão racial? A norma de qual artigo incidiria nesse caso, pois não há referência expressa a hospital na lei? Se se dissesse que, aplicar-se-ia a norma extraível do artigo 20, exsurgiria uma pergunta: tendo o direito à vida e à saúde status diferenciado, pode o inacesso a salão de cabeleireiro ter a mesma cominação de pena? A inadequada referência aos locais de cometimento de racismo só serve para criação de discussões periféricas em princípio e hábeis a levar à absolvição no final.
O artigo 20 dá a impressão de que os artigos que o antecedem não preveem atos que configurariam prática de racismo, necessitando de sua existência. Aliás, o verbo empregado “praticar” é impreciso, merecendo alteração. No que tange à pena, além de ela ser idêntica para o caso de ofensa a uma pessoa ou a um grupo étnico, perceba-se que se Presidente de entidade que reúna empresários e empresas disser, “incitando-os”, que não devem ser contratadas pessoas de determinada etnia, em tese, teria pena menor do que aquele que, no fundo de seu quintal, resolvesse manufaturar suásticas.
Em verdade, a pena mínima não poderia ser inferior a dois anos com o fim de se evitar a possibilidade corriqueira da suspensão condicional do processo prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95. Já a pena máxima deveria ser de 5 anos, evitando-se a possibilidade de fiança. Poderia ocorrer, com esteio no princípio da presunção de inocência, o alcance da liberdade provisória, mas, ao menos, quando da constatação da ocorrência delituosa, haveria plena e pronta resposta do sistema de segurança.
Seja na alterada lei de combate ao racismo ou no Código Penal, mister que se preveja que a retorsão ou o fato de a ofensa ter ocorrido durante ou após discussão, não gerarão afastamento da punibilidade. Ora, é justamente nessas ocasiões que aflora o preconceito, convertendo-se em ação danosa concreta.
Importante destacar que disposição que visa ao combate ao racismo não pode ser prevista apenas levando em conta que a maior parte das vítimas é negra no país, sob pena de se gerar antinomias. Por esse motivo, havendo praticantes de religiões de matriz africana que não são negros, não se deveria inserir a questão da religião no que ora se discute, mas em ambiente próprio, pois também há preconceito religioso a ser frontalmente combatido em nossa Pátria.
Em síntese, as sugestões que se apresenta são a) a revogação parcial do parágrafo terceiro do artigo 140 do CP, excluindo o que diga respeito ao que se denomina de injúria racial; b) a reforma da lei 7.716, restringindo-a a questões atinentes à cor e à etnia, reduzindo-se os tipos penais e se os redigindo de maneira que tenham como conteúdo a intenção de criar desvantagem, de gerar ou de ampliar desigualdade, de negar oportunidade, de impedir ou de dificultar o exercício de direito ou o cumprimento de dever em decorrência da cor ou da etnia da vítima ou, ainda, a revogação da lei 7.716/89, criando-se disposições novas no Código Penal; c) previsão expressa de que, em caso de racismo, em qualquer de suas formas, não caberia o perdão judicial com esteio na ocorrência de retorsão, de embate ou de provocação da vítima; d) cominação de pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa e previsão de cláusula de aumento de pena se o crime atentar contra grupo étnico.
A interpretação concernente ao texto sugerido, por óbvio, advirá das decisões judiciais, da realidade a ser examinada, da experiência do intérprete e dos fatos relativos a cada caso. Todavia, impõe anotar que se adotou linha que se entende pertinente ao que mais ocorre no momento e que, na visão do subscritor, merece ser tipificado criminalmente.
Sublinha-se que há fatos, infelizmente repetidos na vida diária, que podem, ainda, ser combatidos por intermédio de ações civis, em especial ações civis públicas com a destinação de valores para ações concretas de combate ao racismo, bem como por ações criminais com esteio na legislação vigente(como a lei federal 9.455/97) ou, ainda, de forma preventiva, com a aguardada regulamentação do estatuto da igualdade racial (v.g., prevenção à violência policial, diminuição das desigualdades no campo da saúde, da pesquisa, do mercado de trabalho e da educação) e com a implantação do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
No que tange ao aspecto religioso, na medida em que há praticantes de religião de matriz africana que não são negros, a lei atual gera confusão em determinados casos concretos. Logo, prudente é que ofensas diretamente vinculadas a questões religiosas sejam mantidas como móvel para a aplicação do §3º do artigo 140 do Código Penal ou de artigo que vier a lhe substituir com o mesmo teor. Pode-se, ainda, criar artigo ou lei atinente à intolerância religiosa, abordando-se a questão mencionada.
Por se fazer menção ao impedimento ou à dificuldade de exercício de direito juridicamente tutelado, compreende-se a salvo direitos como à saúde, à educação, ao trabalho descente, à cultura, à ascensão socioeconômica, à liberdade de culto e de religião, à livre locomoção, ao acesso aos cargos públicos, sendo despiciendo citar esses ou outros de natureza diversa. Quando se aborda a criação de desvantagem, a geração ou a ampliação de desigualdade, visa-se ao ataque à discriminação indireta, não se inviabilizando a efetivação de ações afirmativas no presente ou no futuro, o que é óbvio pelo contexto constitucional e infraconstitucional pátrio. E quando, quando se estampa a vedação à negativa de oportunidade, abarca-se ataque ao inacesso a possibilidades no mercado e a processos seletivos privados, bem como a vedação de escolhas pessoais serem pautadas por critérios menos nobres.
Entendendo-se que são mais reprováveis os atos promovidos por agente público ou por agente político, nas redes sociais ou nos meios de comunicação, com o intuito de atingir um número maior de pessoas, deveria se prever pena maior nessas hipóteses. Mais graves também são as discriminações que se expressam por meio de violência ou de grave ameaça ou que se configuram em orquestração para não permitir o exercício de direitos ou para negar oportunidade. Nesse teatro, se pessoa não contrata outra pessoa por ser ela negra, a situação é uma. Todavia, se gestor de agência de empregos nega-se a encaminhar negros para contratação, a situação afigura-se bem mais grave.
Crendo que está assazmente demonstrado como a legislação penal atual não cumpre o dever de proteção, aduz-se sugestão de texto legal:
Crime de racismo
Art. Impedir ou dificultar o exercício de direito, criar desvantagem, gerar ou ampliar desigualdade, negar oportunidade ou ofender em decorrência da cor ou da etnia da vítima.
Pena – reclusão, de 2 a 5 anos e multa
§1º Aumenta-se em um terço a pena nas seguintes situações:
I- quando a prática atentar contra determinado grupo de pessoas ou contra determinada etnia em toda a sua extensão;
II- quando o crime for cometido por meio ou em local que gere maior conhecimento sobre a sua ocorrência;
III- quando o criminoso for agente político ou agente público, ou, ainda, quando o crime for levado a efeito em relações de trabalho.
§2º Aumenta-se a metade da pena:
I – quando a discriminação for efetuada mediante violência ou grave ameaça;
II – quando houver associação para a prática de racismo em qualquer das suas formas.
§3º Incide nas mesmas penas quem pratica incitação ou apologia referente ao crime ou ao criminoso.
§4º Não gerarão extinção da punibilidade a ocorrência de retorsão e o fato de o crime ter sido praticado durante discussão ou por provocação da vítima.
§5º A ação penal será pública incondicionada em qualquer hipótese.
A educação racialmente inclusiva talvez seja o caminho mais eficaz para ensejar as transformações faltantes na sociedade. Ela, potencialmente, pode ampliar nossos níveis de coesão social e civilizatórios com base no conhecimento das raízes dos povos formadores do povo brasileiro e do afastamento de uma cultura eurocêntrica e refratária à diversidade.
Esse entendimento já chegou aos profissionais e militantes do campo da educação, como também chegaram as desvantagens no sistema atual que são impostas aos negros e indígenas. Tanto é assim que foi alterada, em 2.003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nos termos da Lei Federal número 10.639/2003 (criando-se o artigo 26-A), posteriormente alterada pela Lei Federal número 11.645/2008.
Desta forma está entabulado no dispositivo legal referido acima:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).”
Cumprida a lei, a escola seria local de construção de outras relações, permitindo-se um melhor desempenho dos alunos, bem como uma diminuição da evasão escolar. Aliás, ao saber mais sobre sua história e sobre sua cultura, negros e indígenas teriam efetiva e ampla integração e os não negros ou indígenas veriam esses outros grupos a partir do conhecimento, ou seja, do conceito e não do preconceito.
Lamentável é constatar que as gestões dos entes federativos não direcionam atenção à possibilidade de com um determinado meio atingir satisfatoriamente mais de um fim. Diverso fosse o processo decisório e de compreensão, realizando análise intertemporal das questões e das soluções possíveis, bem como avaliações de impacto das políticas públicas, poderiam já ter implementado o comando que se extrai da lei.
Esses entes também não demonstram foco na qualidade do gasto público com o fito de atingimento de resultados concretos positivos. Portanto, ao agir no campo da educação de maneira dissociada dos interesses, dos direitos e das necessidades de grupos étnicos que superam a metade de seu contingente populacional, bem como de interesses, de direitos e de necessidades de toda a sociedade, em especial das crianças e dos adolescentes, o Brasil escancara carecer melhor trato da eficiência, da sustentabilidade e da eficácia.
O preconceito e a discriminação racial impedem que potenciais sejam de forma plena explorados individual e coletivamente. Dessa arte, é de interesse das sociedades, sobretudo as dos países em desenvolvimento, combater essas chagas ferrenhamente, já que uma sociedade harmônica, indubitavelmente, tem maior chance de atingir o desenvolvimento e que uma sociedade violadora acaba por desperdiçar talentos. Importa anotar que o ser humano não se limita a objetivos ou a ganhos economicamente mensuráveis, abarcando sentimentos e expectativas coletivas e individuais ligadas à solidariedade, à compaixão e à autoestima. Logo, a persistência do racismo e das desigualdades que produz são nocivas para o indivíduo discriminado, para o não discriminado e para o corpo social.
O racismo pode ser combatido por meio de processos educacionais, por meio de ações afirmativas, por meio da aplicação de sanções, por meio de atos civilizados e civilizatórios vinculados aos exemplos pessoais ou institucionais, bem como pela constituição de estruturas voltadas ao trato dessa questão.
É perceptível que, em solo pátrio, não estamos sendo eficazes no combate ao racismo, pois ele ainda é bem presente e, em certos momentos, afigura-se revigorado. Também não temos sido eficientes porque não utilizamos de forma sistêmica todos os meios dos quais dispomos.
A educação seria o remédio mais forte no combate ao racismo institucional. De bom alvitre destacar que se toma o racismo institucional como o desinteresse ou a desatenção com questão ou com necessidade que interessa a determinado grupo étnico, levando à ocorrência e à permanência da discriminação. Parte-se, por conseguinte, da superação da intencionalidade, tendo-se, como bem ensina RIOS (2.008), como a gênese da discriminação a dinâmica social, o ambiente institucional e as organizações nas quais os indivíduos vivem. Sob essa ótica, o exame do preconceito e da discriminação racial não se calca no sentir e no agir individual, sobretudo em uma sociedade que não se admite racista e que ainda sustenta conformar uma democracia racial, mas nos padrões de conduta, nos posicionamentos e nas composições institucionais e nos resultados práticos para o grupo lesado.
O racismo institucional é inimigo de mais difícil identificação, que necessita de assunção de compromissos institucionais e de afastamento de supostas e danosas neutralidades que são estigmatizadoras e impeditivas do avanço civilizatório.
Desconsiderando o caráter transformador da norma, pois ela visa à formação de uma sociedade baseada no conhecimento e não no preconceito, reafirma-se, ultrapassando a questão educacional e configurando meio de prevenção e de combate às práticas racistas no corpo social, os Estados-membros e os Municípios não deram efetividade sistemática ao que determina a lei. A União, por sua vez, permite, ao não promover a alteração dos currículos das graduações, que profissionais saiam das Universidades sem o conhecimento necessário para ministrar disciplinas de forma adequada ao que determina a LDBEN. Falha, por conseguinte, do ponto de vista educacional, político e econômico, sobretudo porque, além disso, acaba repassando recursos com bem menor possibilidade de êxito, para que os já professores individualmente ou os demais entes federados em períodos de tempo inferiores ao da graduação, compareçam ou promovam eventos e cursos.
Vê-se aí um importante meio de combate ao racismo, a educação, utilizado de forma ineficiente e gerando efeitos inferiores aos quais legitimamente se poderia esperar.
Se não bastasse o descumprimento da lei por parte dos gestores da educação, conta a sociedade com a falta de fiscalização por parte da quase totalidade dos Tribunais de Contas e dos Ministérios Públicos e Defensorias.
Justo é anotar que o Tribunal de Contas gaúcho e a Defensoria-Pública da União, no Rio Grande do Sul, desde 2012, integram grupo de trabalho que fiscaliza a implementação dessa política pública por parte dos Municípios do Estado. Essa iniciativa, que gerou a criação de uma metodologia de fiscalização específica, é única no país, o que torna seus resultados elogiáveis, mas pequenos diante do desafio enfrentado.
4. Conclusão:
No Brasil, os negros e negras não tem seus direitos fundamentais efetivamente protegidos em campos extremamente relevantes. Tal afirmação está sustentada nos dados pertinentes às questões eleitas acima. A razão dessa proteção deficiente ou insuficiente deita raiz no longo período de escravização seguido da adoção de políticas públicas de baixa eficiência e de insatisfatória eficácia.
Nesse cenário, não é crível que possam ser atingidos os Objetivos Republicanos, tampouco os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as metas da Década Internacional dos Afrodescendentes.
No campo das ciências, em especial, no Direito, é inafastável agregar cortes raciais nos estudos, nas pesquisas e nas análises sobretudo nas que digam respeito ao desenvolvimento, à igualdade, à tomada de decisão, à justiça, às políticas públicas e a questões econômicas.
No campo político e no da gestão, é inarredável a alteração dos processos e dos critérios decisórios, conferindo-se a ações plenamente planejadas uma maior possibilidade de êxito, ou seja, eficiência e eficácia devem ser agregadas. Mister que sejam bem definidos os fins a serem atingidos, bem como os meios de se lhes dar concretude. No caso concreto, a eficiência das políticas ligadas à igualdade racial estará diretamente vinculada ao afastamento de simbologias e ao agregar de preocupação com o atingimento de resultados e de impactos positivos concretos.
Nesse teatro, a educação racialmente inclusiva, em decorrência das transformações que pode ensejar em negros e em não negros é o instrumento a ser amplamente utilizado, pois representa a possibilidade da construção de uma sociedade baseada no conceito, ou seja, no conhecimento e não no preconceito.
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[1] Resolução número 68/237, Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, https://nacoesunidas.org/img/2014/10/N1362881_pt-br.pdf (acesso em 28/07/2017).
[2] https://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/ (acesso em 28/07/2017).
[3] https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/ (acesso em 28/07/2017)
[4] Atlas da Violência 2017 produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais – Uma teoria geral dos Direitos Fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª edição. Porto Alegre/RS. Livraria do Advogado Editora, 2011. p.
[6] Ibid., p. .
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1ª edição brasileira. São Paulo – SP. Editora Revista dos Tribunais, 2008. 2ª Edição portuguesa. Coimbra – Portugal. Coimbra Editora, 2008. p. 75.
[8] SARLET, op. cit., p. 399
[9] PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito, Martins Fontes, 2.005, p. 9.
[10] PERELMAN, op. cit., p. 10
[11] Ibid., p. 11.
[12] PERELMAN, op. cit., p. 12
[13] RIBAS, Antonio Joaquim, Direito Administrativo Brasileiro, Ministério da Justiça, 1.968, p. 223.
[14] SANTOS, Lucimar Felisberto, Os bastidores da Lei: as estratégias escravas e o Fundos de Emancipação http://www.revistahistoria.ufba.br/2009_2/a02.pdf
[15] Tábua de vida 2001 – IBGEhttp://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/evolucao_da_mortalidade_2001.shtm
[16] http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550
[17] Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar à idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
[18] Perfil, social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas, Instituto Ethos, 2016, São Paulo.
fonte: REVISTA DA AGU, VOLUME 18, N. 02, ABR./JUN., 2019
https://www.academia.edu/39735032/A_POPULA%C3%87%C3%83O_NEGRA_BRASILEIRA_E_A_PROTE%C3%87%C3%83O_DEFICIENTE_DE_DIREITOS_FUNDAMENTAIS_THE_BRAZILIAN_BLACK_POPULATION_AND_THE_DEFICIENT_PROTECTION_OF_FUNDAMENTAL_RIGHTS