Jorge Terra

17 de abril de 2024

A CONSTITUIÇÃO DE UM PLANO DE ENFRENTAMENTO DAS ALTAS TAXAS DE MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS E POBRES

A CONSTITUIÇÃO DE UM PLANO DE ENFRENTAMENTO DAS ALTAS TAXAS DE MORTALIDADE DE JOVENS NEGROS E POBRES.

 

Resumo: As taxas de mortalidade de negros e pobres no Brasil são muito altas. Essas taxas são mais elevadas quando considerada a parte mais jovem da população. Instituindo uma Comissão, o Parlamento realizou investigação sobre as causas possíveis de um número elevado de negros e pobres serem vítimas de homicídio. Concluídos os trabalhos, com o fim de alterar essa situação, objetiva-se a aprovação de emenda constitucional e de projeto de lei para que haja um plano que gere mudança significativa do atual quadro. Evidente é a valorização que a Comissão confere à lei, tendo-a como instrumento capaz de realizar mudanças. Todavia, sem desmerecer esse ponto de vista, é importante que o plano esteja conectado com outras questões e não apenas com a segurança, havendo preocupação sistemática e abrangente. A lei isoladamente pouco mudará o quadro vivenciado. Ela é um meio que deve estar de acordo com outros para que os resultados sejam transformadores. Sem se alterar a educação, o mercado de trabalho e outros espaços importantes, não serão atingidos resultados significativos. Deve haver preocupação com a eficiência e com a eficácia das políticas públicas, bem como com a influência de stakeholders. Além disso, é de se promover mais audiências para reunir mais conhecimentos, criar parcerias e identificar possíveis adversários, identificando que contribuição o Direito pode oferecer na solução desse problema.

Palavras-chave: mortalidade, jovens negros, planejamento.

  1. Introdução

A Proposta de Emenda Constitucional tombada sob o número 129/2015 versa sobre a inclusão dos incisos III e IV no parágrafo 8º do artigo 227 da Constituição Federal.

Por meio de uma construção legislativa, objetiva-se a solução de tormentosa questão, uma vez que há constatação da perda de numeroso contingente de pessoas em decorrência da violência amplamente disseminada em solo pátrio.

Imprescindível analisar se a escolha levada a cabo é adequada e suficiente, se o problema visado merece a atenção que se pretende empregar e se há caminho estrategico a ser criado e sedimentado.

Nesse sentido, não se pode descurar de iniciativas aduzidas com o fim audacioso de se extinguir ou de se minimizar os efeitos das desigualdades vivenciadas no Brasil.  Tampouco pode haver a omissão de algum dos atores, devendo todos ofertar  o melhor de seus esforços para o atingimento de objetivos nobres e viáveis.

  1. O quadro vivenciado: alta mortalidade de negros no Brasil

Temas como igualdade racial, saúde da população negra, crimes raciais, interferência da raça ou da cor para obtenção ou manutenção de emprego, inserção da história e da cultura negra nos currículos escolares são relegados a planos que os aproximam da “invisibilidade” e os tornam como interessantes e necessários somente para uma parcela da população brasileira.

A verdade é que essas temáticas deveriam ser relevantes para todo o corpo social. Em não sendo, seriam, pelo menos, para a comunidade negra que, sabidamente, ultrapassa a metade da população brasileira.

No supracitado cenário, não surpreende a pouca ou nenhuma atenção com a mortalidade de jovens negros demonstrada nos ambientes acadêmicos e políticos apesar de os dados serem há muito alarmantes. Cumpre aqui, ao reproduzir parte das conclusões de pesquisa levada a efeito no ano de 1.998, sublinhar que à época, não se apresentou recorte racial nas análises. Todavia, empiricamente e pelos dados geográficos e culturais mencionados, ficava evidenciada a possibilidade de que muitos dos casos podiam ser de jovens negros[1].

Nossas taxas referentes a homicídios e outras violências, semelhantes às dos EUA, são 20 vezes superiores às taxas da Itália ou do Canadá; quase 50 vezes superiores às da Irlanda ou da Espanha, entre muitos outros países. E, neste campo ainda, algumas das informações derivadas do Sistema de Informações sobre a Mortalidade são realmente estarrecedoras: no plano nacional, 35,1% das mortes de jovens devem-se a homicídios e a outras violências. Nas capitais do país, essa proporção se eleva para 41,8% e, nas regiões metropolitanas, para 47.7%. Praticamente, uma em cada duas mortes de jovens nas regiões metropolitanas têm sua origem nesta causa.

Em se cuidando do direito fundamental à vida, o que restava e resta violado ou, no mínimo comprometido, faz com que o Direito esteja obrigado a buscar alternativas tendentes a, ao menos, minimizar a situação vivenciada. Não se pode desconsiderar que o decorrer do tempo sem a tomada de decisões públicas e privadas qualificadas  gerou repercussões diretas e indiretas nos campos vinculados ao direito fundamental ao desenvolvimento e a outros de igual relevo. Assim sendo, é inegável que é indispensável uma articulação acelerada, pois os dados conhecidos não permitem mais adiamentos e inércias.

Nessa linha, é importante perceber a sofisticação atingida pelo estudo denominado de Mapa da Violência. Já no pertinente ao ano de 2.016, ele demonstra a evolução dos homicídios por armas de fogo no Brasil dentro no período de 1980 a 2014. Além disso, escancara-se a incidência de fatores como o sexo, a raça/cor e as idades das vítimas dessa mortalidade, apontando-se as características da evolução dos homicídios com a utilização de armas de fogo nas unidades da federação, nas Capitais e nos Municípios com elevados níveis de mortalidade [2].

São magnitudes tão absurdas e surreais que torna-se difícil dimensionar seu significado, foge a nosso entendimento e experiência. Temos, para dar um exemplo, que a AIDS, causada  pelo  malfadado  vírus  da  imunodeficiência  humana  (HIV),  matou  12.534 pessoas no ano de 2014. É um número que revela uma situação preocupante, dando origem,   justificadamente,   a   numerosos   campanhas,   programas,   mecanismos   de prevenção, proteção e/ou tratamento. Mas este outro flagelo, o das armas de fogo, que nesse mesmo ano matou um total de 44.861 pessoas — quase quatro vezes mais que a  AIDS — pouca  ou  nenhuma  atenção  parece  merecer.  No  máximo,  discursos preocupados  e/ou  políticas  pontuais,  contingenciadas  tanto  na sua  cobertura  e incidência, quanto no seu financiamento, continuidade e centralidade.
Mais adiante, frisa-se que a questão racial é crucial para se bem compreender a segurança no Brasil[3]:

Ainda mais perversa e preocupante é a seletividade racial dos HAF, além de sua tendência crescente. Entre 2003 e 2014, as taxas de HAF de brancos caem 27,1%, de 14,5, em 2003, para 10,6, em 2014; enquanto a taxa de homicídios de negros aumenta 9,9%: de 24,9 para 27,4. Com esse diferencial, a vitimização negra do país, que em 2003 era de 71,7%, em poucos anos mais que duplica: em 2014, já é de 158,9%, ou seja, morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo.

No já assazmente referido estudo, elenca-se como causa da inegável desigualdade de tratamento entre brancos e negros na atualidade a longa escravização no Brasil.

Outra causa seria a crescente privatização do aparelho de segurança, ou seja, a ofertada para os que podem ou não pagar conduz a um quadro de desigualdade e de injustiça. Enquanto os brancos disporiam de uma segurança privada somada à uma precária segurança pública, os negros disporiam, em regra, apenas da pública por terem menor remuneração e maior taxa de desemprego. Ademais, inserta dentre os temas de interesse político-eleitoral, a segurança vê seus gestores tendo como critério de distribuição de efetivos e de recursos, bem como de necessidade de realizar investigação e de elucidar casos, a posição socioeconômica e a localização geográfica das pessoas, privilegiando os bairros mais abastados.  Esse quadro, sem sombra de dúvidas, criou maiores dificuldades para os negros. Isso sem se olvidar de que a letalidade e seletividade policial também tem conduzido a uma maior vitimização negra.

Os mencionados trabalhos estão acompanhados de outros de iguais níveis de qualidade e de credibilidade. Dentre eles, traz-se aqui o Atlas da Violência 2.017 produzido pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Forum de Segurança Pública em parceria.

Colhe-se do primeiro o ensinamento sobre a imprescindibilidade de o Brasil alterar sua forma de registro com o fito de diminuir seus índices de subnotificação, bem como de alterar seus procedimentos com o fim de diminuir a letalidade e a violência policial.

Assim está consignado no Atlas supradito:

A categoria “intervenções legais e operações de guerra”, registro Y35-Y36 do SIM, continua apresentando um alto grau de subnotificação, como confirmam os números da segurança pública. Em 2015, o SIM registrou apenas 942 casos de intervenções legais(Tabela 3.1), enquanto a segurança pública registrou 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais (Tabela 3.2), ou seja, 3,5 vezes o número de registros da saúde.

Para além da necessidade de rever os protocolos de registro para esses casos pela área da saúde, devemos insistir na mudança de um modelo de segurança pública que, se não promove, é conivente com o uso abusivo da força letal e execuções sumárias, ao mesmo tempo que expõe e vitimiza cada vez mais os seus agentes.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2015, ao menos 358 policiais civis e militares constam das estatísticas de homicídio do país.

Nos últimos anos, assistimos a um realinhamento a favor desse modelo de atuação policial que permanece com o um dos maiores desafios de nosso processo de consolidação democrática e de um efetivo Estado de Direito.

Estar-se-ia privilegiando um atuar belicista e não dialogal, ampliando-se o número de vítimas inclusive de policiais. Aliás, sobre as vítimas policiais, importante consignar o seguinte trecho do mencionado Atlas da Violência:

De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra. Cerqueira e Coelho (2017), a partir de análises econométricas com base nos microdados do Censo Demográfico do IBGE e do SIM/MS, mostraram que a tragédia que aflige a população negra não se restringe às causas socioeconômicas. Estes autores estimaram que o cidadão negro possui chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos de outras raças/cores, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência. Cerqueira e Coelho mostraram que, do ponto de vista de quem sofre a violência letal, a cidade do Rio de Janeiro é partida não apenas na dimensão econômica entre pobres e ricos, ou na dimensão geográfica, mas também pela cor da pele. Ao calcular a probabilidade de cada cidadão sofrer homicídio, os autores concluíram que os negros respondem por 78,9% dos indivíduos pertencentes ao grupo dos 10% com mais chances de serem vítimas fatais, conforme o Gráfico 5.1 deixa assinalado.

Esse caráter discriminatório que vitima proporcionalmente mais a

juventude negra também foi documentado no estudo “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade”. Neste trabalho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública incorporou um indicador de desigualdade racial ao indicador sintético de vulnerabilidade à violência dos jovens (mortalidade por homicídios, por acidente de trânsito, frequência à escola e situação de emprego, pobreza e desigualdade).

III. A construção legislativa de solução

Após a conclusão dos trabalhos pertinentes à Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar as causas, consequências e custos sociais e econômicos da violência, das mortes e dos desaparecimentos de jovens negros e pobres, denominada de CPIJOVEM, foi apresentada, em 09/09/2015, a proposta de emenda à constituição número 129/2015.

Essa proposta contou com as assinaturas de 178 Deputados Federais, exigência do inciso I do artigo 60 da Constituição Federal, o que permitiu sua distribuição à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde foi apresentado e aprovado parecer favorável à sua tramitação, em 25/10/2016 e em 21/11/2017 respectivamente, por se reconhecer sua constitucionalidade e sua juridicidade.

Publicado o parecer supracitado e mediante requerimento do Deputado proponente, foi instituída, em 30/11/2017, comissão especial, a ser composta por trinta e quatro titulares e pelo mesmo número de suplentes, para que seja proferido parecer à PEC 129-A nos termos do regimento interno da Câmara dos Deputados.

A proposta tem por fulcro a inserção dos incisos III e IV no parágrafo 8º do artigo 227 da Lei Maior com o fito de que os entes da federação instituam planos de enfrentamento aos homicídios de jovens e de que seja criada lei que preveja que os planos sejam decenais e de que haja articulação entre as esferas de poder, entre si, e com a sociedade civil para a execução de políticas públicas que conduzam à redução do número de homicídios de jovens no Brasil.

A redação atual do artigo a ser alterado é a seguinte:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

(…)

  • 8º A lei estabelecerá: (Incluído Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

I – o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens; (Incluído Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

II – o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas. (Incluído Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

Já a proposta de emenda à constituição tem o seguinte teor:

Art. 227. (…)

(…)

  • 8º (…)

III – os plano nacional, estadual, distrital e municipais do enfrentamento do (sic) homicídios de jovens;

IV – a lei disporá sobre os planos de enfrentamento de homicídios de jovens, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas de poder e sociedade civil para a execução de políticas públicas para a redução de homicídios de jovens.

Importa consignar que a lei prevista no proposto inciso IV, por meio do projeto de lei número 2.438/2.015, também em decorrência do trabalho desenvolvido pela já mencionada comissão parlamentar de inquérito, teve seu texto apresentado para apreciação da casa legislativa mencionada.

No que concerne à PEC, cumpre dizer que sua tramitação e as discussões e ações que ensejará já configuram certo avanço, pois se efetivamente cumpridas as atuais disposições do artigo 227 da Lei Maior, sobretudo porque ele determina prioridade absoluta para o atendimento de questões relevantíssimas que envolvem as crianças, os adolescentes e os jovens, a situação restará bem superior à atual. Sublinhe-se que o caput do artigo 227 torna obrigados a família, a sociedade e o poder público.

A verdade é que há a necessidade política de se reforçar as disposições já existentes e de articular ações concretas voltadas ao alcance de resultados positivos.

Normalmente, os planos são aduzidos pelo Poder Executivo, pois implicam a assunção de compromissos, inclusive orçamentários relacionados à criação de estruturas e de cargos, que tornam o chefe daquele poder o legitimado para trazer às luzes legislação que formaliza acordos e articulações entre as esferas de poder e a sociedade civil.

O quadro atual, que é objeto de críticas no âmbito internacional, no entanto, impõe que parlamentares tomem iniciativas que induzam os agires dos Poderes Executivos e das entidades privadas, incluindo na agenda nacional o tema em comento. Isso porque sabedores que o Brasil, conforme estudo publicado no mês de novembro de 2017 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância(UNICEF)[4], está no sétimo lugar no ranking de países onde morrem mais crianças e adolescentes em decorrência de homicídios. Dessa arte, refugindo de debates sobre eventual vício de origem, não é vedado que parlamentares ou o parlamento ofereçam, após articulações com a sociedade civil e com os Poderes Executivos, sugestão de texto legal diretamente ao Poder Executivo.

Sublinhe-se que, na justificativa relativa ao projeto de lei número 2.438/2.015, parcialmente reproduzida abaixo, o proponente aponta que os Executivos tem melhores condições de instituir os planos de enfrentamento que compreende ser indispensáveis.

Além disso, vislumbramos que o Poder Executivo é o único detentor das condições para definir objetivos, metas globais e setoriais, os programas e recursos necessários, que são elementos que, de fato, caracterizam um plano.

Partimos, portanto, do pressuposto que um documento denominado Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens é uma peça a ser elaborada pelo Poder Executivo, em estreita colaboração com a sociedade e os demais Poderes. Nesse sentido, a principal contribuição do Poder Legislativo reside em apresentar um documento de diretrizes, estas construídas a partir da ausculta dos jovens e a todos os interessados, processo que ocorreu de forma intensa durante os trabalhos da CPI.

No projeto de lei sub examine, preveem-se competências para a União, para os Estados, para o Distrito Federal e para os Municípios e não, por exemplo, para as Casas Legislativas, incluindo Tribunais de Contas e para o Poder Judiciário.

Destaque-se que há artigo no qual se institui o plano (artigo 1º); há artigos nos quais se estabelecem as competências para instituir os planos nacional e regionais (artigos 4º, I, 5º, I, 6º, I e 7º); há a promessa de se limitar a trazer à tona diretrizes por se compreender os Poderes Executivos como os capazes de instituir os planos nacional e regionais (justificativa). Evidencia-se, no texto, existência de contradição a ser corrigida portanto.

Há artigo que prevê as diretrizes dos planos (art. 3º). Se por um lado há o elogiável estabelecimento de uma meta, o que permite que sejam criados indicadores para se examinar os resultados e impactos dos planos, percebe-se, por outro, que o maior detalhamento das diretrizes permitiria um maior controle a posteriori, bem como um maior controle dos parlamentos sobre o instrumento a ser criado pelos Poderes Executivos.

Outrossim, não se constata a criação de relação com outras iniciativas existentes ou pendentes de efetivação, o que impede real ataque ao racismo institucional. E mais, não se entabula hipótese na qual se perceba o negro como sujeito das transformações que precisam ser levadas adiante.

Em outros termos, a diversidade no seio das instituições integrantes do sistema de justiça e de segurança é meio capaz de mudar os valores institucionais e a mera adoção do sistema de cotas raciais nos processos seletivos revela-se insuficiente para tal empreitada. A insuficiência reside tanto no número pequeno de cotistas que logram êxito nos certames para provimento de cargos vinculados à atividade-fim dessas instituições, quanto na falta de estrutura institucional que acompanhe o servidor durante um determinado período de sua vida funcional e não apenas o selecione.

É, com efeito, preciso pensar-se no sistema de cotas menos como forma de acesso diferenciado ao cargo público e mais como forma de contribuição do servidor que teve vivência diferenciada para a constituição de uma instituição mais democrática, transformadora, competitiva e apta a construir soluções para os problemas da sociedade, dentre eles a morte de jovens pobres e negros.

Frisa-se que, em 1º/11/2017, foi aprovada a audiência pública realizada em 7/11/2017, para a oitiva de dois integrantes do sistema de justiça, um do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e outro da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, convidados por suas trajetórias pessoais e não como representantes institucionais, e de dois representantes de instituições ligadas ao movimento social, ambas do Rio de Janeiro. A elogiável iniciativa de ouvir pessoas precisa ser reprisada em outros locais do país, permitindo-se a apreensão das diferentes realidades e a entrega de sugestões qualificadoras do trabalho a ser realizado. Obviamente, o trabalho de itinerância e de verdadeira e rica troca com a sociedade deve ser realizado dentro de período determinado e com o firme propósito de ouvir aqueles que são favoráveis e os que são desfavoráveis à concretização das medidas que se vislumbram inafastáveis.

Essa oitiva ampliada, chamemo-na assim, permitirá a constituição de um parecer referente ao projeto de lei, foco da audiência pública mencionada acima, no qual sejam evidenciados os conhecimentos, as iniciativas, as políticas públicas a serem constituídas ou efetivadas, as pessoas e as instituições privadas e públicas indispensáveis para que o trabalho seja altamente qualificado; permitirá também a identificação de possíveis parceiros nas caminhadas nos seios do Legislativo, do Executivo e Judiciário, bem como de possíveis adversários, seus argumentos, suas fragilidades e seus interesses em negociar.

É possível já depreender que a mobilização que se faz urgente ganhará mais intensidade e profundidade se os seus limites não forem os estreitos da segurança, mas se a ela forem incorporados o que pertine ao desenvolvimento, à eficiência e à eficácia das políticas públicas, à imprescindibilidade do planejamento e à sustentabilidade dos investimentos sociais e econômicos, bem como a preocupação com infraestruturas físicas e sociais.

  1. Um caminho para a construção de soluções

Oportuno consignar que a lei é um instrumento para a construção de solução, mas não é o único, tampouco a garantia de que haverá modificações concretas positivas. Ressalte-se que a lei não é o ponto final de uma caminhada que depende de mudança comportamental significativa.

Nesse teatro, não se vislumbra solução se as questões até o momento abordadas o forem de forma isolada e limitada. Se a força motriz dos problemas está no racismo e se esse é estruturado, somente uma ação sistêmica pode impactar positivamente o teatro já descrito.

A enorme mortalidade de jovens brasileiros, em especial de negros e de pobres, integra um conjunto de questões relevantes que são tidas como de somenos importância ou valia. Não se há de desconsiderar que, há muito, sem a força capaz de ensejar transformação, gritam segmentos numericamente importantes da sociedade por um melhor trato da igualdade racial na educação, na saúde, no mercado de trabalho, na segurança e nos espaços de poder.

Esse desconsiderar é que forma os nocivos quadros dos racismos estrutural e institucional, que se apresentam de diferentes formas, em diferentes momentos e intensidades. Por via de consequência, entende-se que a atuação deve ser sistematizada e deve ter por norte o campo do desenvolvimento do país e da comunidade negra em especial, permitindo-se a busca de novos atores, de diferentes soluções e de novos e maiores recursos humanos e financeiros.

O movimento social, especialmente o movimento negro, tem sido atingido pela tomada ou pela não tomada de decisões transformadoras. Todavia, em não raras vezes, não consegue influenciar significamente nas tomadas de decisão, sendo um stakeholder com extremo interesse, mas pouco ou nenhum poder ou influência.

Inafastável verdade é que o Brasil assumiu compromissos graves de naturezas diversas. As assunções supraditas estão no texto da Carta Magna, em atos internacionais e em leis de abrangência interna.

No que concerne ao desenvolvimento, o proceder brasileiro não é diferente, estando estampado na constituição pátria como um objetivo republicano, bem como em atos internacionais bi ou multilaterais e em leis nacionais.

Relevante é definir que abordagem se dá ao desenvolvimento, não o tendo como sinônimo de crescimento econômico, mas o concebendo como mais amplo. Assina-se que o crescimento econômico acelerado seria uma condição indispensável, mas não suficiente para se reduzir a pobreza e a desigualdade social, já que aquele pode se dar com desemprego, exclusão, sem participação, com destruição de culturas nacionais e com deterioração do meio ambiente.

Não se pode tirar de visada que o desenvolvimento nacional deve ser sustentável, ocorrendo em uma sociedade justa, livre e solidária, com foco na promoção do bem de todos, erradicando a pobreza e a marginalização, bem como reduzindo as desigualdades. De outro modo, a pretexto de cumprir norma extraível do texto constitucional, estaríamos a descumprir outras de mesma origem e grau hierárquico. Não se há de recair no equivocado entendimento de que o crescimento econômico naturalmente será “derramado” sobre os cidadãos mais pobres. Mister que haja a superação do modelo do derrame, percebendo-se que o desenvolvimento social é vital para o desenvolvimento econômico sustentado, porque os investimentos em capital humano e capital social e a melhoria da equidade são necessários para o crescimento econômico ser sólido[5].

O desenvolvimento é resultado de ações articuladas e continuadas, tornando-se um desafio para as sociedades. Ele exige convicção e força na busca do equilíbrio entre seus custos e suas vantagens, tanto no plano regional quanto no global, impondo discussão sobre campos e formas de atuação estatal, bem como sobre regras de regulamentação.

O desenvolvimento está imbricado com a eficiência. Por conseguinte, é indispensável sobre ela também tratar.

A eficiência deve ser perseguida na gestão brasileira, independentemente de posicionamento ideológico, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional número 19/98 que, mais do que acrescer o princípio correspondente na cabeça do artigo 37 da Constituição Federal, estatuiu um sistema voltado à transição de uma administração pública patrimonialista para uma administração pública gerencial, ou seja, voltada para o alcance de resultados concretos positivos.

A eficiência, seja como princípio, seja como postulado, é um critério de atuação administrativa concernente à utilização adequada dos meios disponíveis para se atingir os fins de interesse público, sejam eles primários ou secundários, da maneira mais abrangente e profunda possível diante das peculiaridades do caso concreto. Essas peculiaridades são o nível de informação que pode ser obtida pelo agente, o tempo disponível para o enfrentamento do problema, a quantidade de recursos disponibilizados e a necessidade de se satisfazer mais de um fim com o mesmo meio.

A eficiência, na medida em que é critério normativo da atuação administrativa, deve estar inserida no encaminhamento das soluções de problemas de diversas ordens em cotejo com os outros princípios encartados no caput do artigo 37 da Carta Magna. Ela, assim, atrelada aos seus fundamentos e aos aspectos atinentes à sua operacionalidade, poderá ser fator de transformação cultural, institucional, econômica e social, proporcionando a consecução dos Objetivos entabulados no artigo 3º da nossa Lei Maior, dentre eles o do desenvolvimento nacional.

É fundamental, dessarte, que haja um manejo das externalidades capazes de gerar afastamento ou retardo do atingimento dos resultados positivos tão necessários para a consecução do desenvolvimento. As externalidades mencionadas acabam conformando o ambiente vivenciado, bem como influenciando a performance das instituições públicas e privadas que objetivam alcançar eficientemente o fim anteriormente apontado.

Anote-se que compromisso institucional da dimensão que tem o desenvolvimento não é atingido sem atenção à infraestrutura. Nesse sentido, é forçoso tratar de infraestrutura, compreendendo-se o Direito como um de seus elementos estruturantes e definindo esse último como o somatório do arcabouço jurídico com seus processos legislativos, das estruturas administrativas, das atividades administrativas, das procedimentalizações, das decisões proferidas nos âmbitos administrativo e judicial com seus respectivos critérios e métodos, bem como dos níveis de eficiência, de eficácia e de celeridade atingidas. Aliás, o Direito administrativo, nas fases que vivenciamos e na que precisamos ainda vivenciar, configura-se em ramo que rege as atividades jurídicas do Estado que deve atender os interesses públicos tendo por norte a segurança e o benefício dos administrados.

A infraestrutura pode ser física como o são a malha rodoviária, as redes de comunicação, o sistema energético, bem como social, como a educação, a saúde, o sistema jurídico.

A infraestrutura deve ser aquela que, no mínimo, tenha o nível suficiente para que haja o desenvolvimento de forma sustentável. É evidente que os riscos são inerentes à atividade administrativa e à vida negocial. Entretanto, a administração perseguidora de resultados sociais, ambientais e econômicos tendentes ao cumprimento dos objetivos republicanos está forçada a, de forma planejada e sistêmica, minimizar ou evitar os seus efeitos.

O ponto é que, apesar do contido no artigo 174 da Constituição Federal, não desenvolvemos a cultura do planejamento no campo prático, sobretudo quando é indispensável pensar a longo prazo.

A complexidade das administrações públicas e a das crescentes demandas a elas apresentadas em um quadro de recursos limitados, de exiguidade de tempo e de necessidade de atingimento de fins exigem o emprego de planejamento.

De início, já se sublinha que planejar, sinteticamente, é definir fins satisfatórios ou ótimos dependendo das situações vivenciadas e dos recursos disponíveis, bem como dos meios adequados ao atingimento dos primeiros.

O planejamento ou a condução de um planejamento, em numerosas ocasiões, exige o conhecimento aprofundado dos processos, dos produtos ou dos serviços pertinentes, bem como dos insumos envolvidos e da cadeia indispensável para os obter. Além disso, exige também a capacidade de obter, de classificar e de utilizar informes e informações, bem como, tendo uma boa noção dos comportamentos cooperativos ou não das pessoas envolvidas em alguma parte do processo, de realizar prognoses.

O planejamento é uma atividade racional, mas que, em algumas hipóteses, pode não desprezar a intuição, sendo importante conhecer ou buscar conhecer questões comportamentais do público-alvo ou dos componentes do grupo de trabalho. Não se pode olvidar, contudo, de que o agente terá uma racionalidade limitada, ou seja, uma deficiência de informação ou de como computar os dados ou as informações de que necessita[6].

Poderá a limitação estar vinculada aos meios, como a insuficiência de recursos humanos ou financeiros para buscar ou para manipular dados. Sim, não se pode descurar dos custos administrativos tal como do tempo para se obter informações, podendo a análise custo-benefício ser ou não suficiente para se atingir uma conclusão. Aliás, guardando-se atenção à sustentabilidade, não serão raras as vezes que a análise mencionada não será bastante.

Haverá ocasião na qual a limitação estará vinculada ao fim, exigindo que previamente o agente decida se perseguirá uma decisão ótima ou uma decisão satisfatória. Isso se dará quando o caminho eleito gerar gritante diferença de tempo, de custo ou de outra natureza. Obviamente, essas questões devem ser cotejadas com o retorno a atingir e esse poderá ou não ter expressão financeira.

Não se há de esquecer que intercorrências podem evidentemente exsurgir, sobretudo quando houver variáveis que não sejam integralmente controláveis. A impossibilidade de controle total pode decorrer do fato de se depender do atuar de outras pessoas ou instituições que podem ou não ter a mesma capacidade de trabalho ou de compreensão da importância da atividade. Pode, ainda, a dependência estar atrelada a alguma questão climática.

A verdade é que a existência de um plano e, mais do que isso, o fato de se ter realizado um planejamento, levará a pensar sobre as externalidades que podem ensejar alteração, bem como nas fragilidades ou carências envolvidas. Com isso, havendo o problema, aquele que planejou estará mais apto a encontrar, caso não a tenha programado, uma alternativa, no mínimo, satisfatória.

O plano, é bom que se diga, não é uma forma nova de atuação jurídica. Ela, de fato, envolve a utilização do repertório de atos de direito público e de direito privado recorríveis para o atingimento dos objetivos institucionais[7]. De bom alvitre mencionar que o planejamento envolverá também os conhecimentos não jurídicos que melhor dialogarem com o campo de atuação daquele que planeja ou com o teatro de operações onde haverá o desenvolvimento do plano.

No que pertine ao planejamento, mister referir que são insuficientes mudanças estruturais administrativas, sendo fundamental modificar a forma como atuam as organizações (processos) e como se relacionam entre si. Importante também, além de liderança agregadora, é a capacitação dos envolvidos para possam bem conduzir os processos estando ou não no centro do sistema de planejamento[8].

O fato é que somente com uma visão estrategica poder-se-á promover modificações e adaptações indispensáveis para dar concretude ao que nos comprometemos nas searas internacional e nacional. Nesse ponto, deita raiz a importância do planejamento.

O planejamento, em regra, está vinculado às políticas públicas. Dessarte, quanto mais eficiência houver no processo de concepção e no de implementação da política pública, menor será a possibilidade de o planejamento ser inexitoso.

Prudente, então, tratarmos nesse ponto sobre a formulação de uma política pública.

Política pública é a solução aduzida pela administração pública com o fito de resolver ou de minimizar problema concreto e socialmente relevante. Portanto, partindo-se dessa premissa, essa política deve ser o fruto dos melhores esforços estatais alinhados com contribuições e articulações do movimento social.

Não obstante, na fase de concepção da política, a preocupação com a qualidade dos processos decisórios levará à obtenção de informações sobre a situação a ser transformada, sobre as instituições e pessoas capazes de colaborar, sobre os conhecimentos necessários, sobre os interesses em jogo e sobre as experiências adotadas em casos idênticos no país ou em outros lugares, bem como sobre os resultados aferidos e sobre as formas de os avaliar.

Na fase da aplicação da política pública, definidos o público-alvo, os resultados pretendidos, os modos e os momentos de os atingir, os possíveis parceiros, os possíveis adversários e os espaços de negociação, devem ser arrolados os previsíveis entraves e as formas de os combater eficazmente.

Nesse quadro, sinteticamente, pode-se afirmar que, uma vez que a instituição decidir levar a cabo determinada política, deve se organizar para que ela chegue onde ela é indispensável.

Em decorrência disso, revela-se instrumento adequado a realização de audiência pública. Esse meio, perfectibilização da participação popular na administração pública, amplia o número de propostas sobre a temática em causa, pode permitir a produção de consensos necessários, bem como a diminuição de dissensos ou a constituição de estrategias de negociação que talvez fossem desconsideradas na formulação levada a cabo apenas por integrantes da administração pública ou por consultores contratados.

A qualidade dos processos decisórios e a qualidade da política pública que se quer implantar estão conectadas com a qualidade do plano que se quer por em execução.

Todavia, é bom que se diga que até as ideias ou propostas que não sejam técnica ou juridicamente relevantes necessitam de planejamento. Talvez, precisem mais ainda do planejamento do que aquelas. Ocorre que aqui o planejamento estaria mais focado nas estrategias de convencimento e de negociação.

Apresentadas essas ideias, passa-se ao exame do caso concreto.

Entende-se que há pontos essenciais para o enfrentamento do grande número de homicídios mais de uma vez mencionado.

Ao ver do signatário, o combate que se pretende travar não pode ser cogitado sem se também focar na efetivação de uma educação racialmente inclusiva, pois estar-se-á mirando pensando também nas gerações futuras e adotando-se meios que produzem resultados duradouros de médio e de longo prazos. Em síntese, predominará uma visão de nação e não apenas um meio desvinculado da sustentabilidade.

Nesse sentido, eleger-se-ia como fundamental que os planos de enfrentamento pretendidos perpassassem pelo cumprimento nas escolas privadas e públicas, de ensino fundamental e médio das disposições do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que dispõe sobre a obrigatoriedade de serem inseridos nos currículos escolares a história e cultura africana, afrobrasileira e indígena.

Parte-se do pressuposto de que aquele que tem uma educação inclusiva, ou seja, que assume os direitos humanos como valores por meio do qual passa a examinar os fatos da vida, não abordará mais ou com o emprego de violência os que forem não brancos.

Independentemente dessa visão de longo prazo, é inegável que é indispensável repensar os cursos de formação de policiais cujas cargas horárias para se abordar todos os temas de direitos humanos são extremamente pequenas. Ademais, como a socialização que se dá nessas atividades é interna, ou seja, como a apreensão de valores e de características institucionais se dá ao se desempenhar a atividade e não durante a formação inicial, é obrigatório pensar e prever uma formação continuada para policiais militares civis com ampla ênfase em direitos humanos. Essa é uma alternativa a ser considerada para diminuir a violência policial.

Existem disposições legais vinculadas à essa seara e existem estruturas administrativas constituídas e até solidificadas. Porém, o descumprimento da legislação supracitada é premiado com a impunidade. Isso porque, no Brasil, somente o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul exerce o controle oficial junto aos Municípios, estando por inaugurar semelhante controle sobre o Estado.

Em se cuidando de desigualdade socioeconômica, indispensável que, com esteio em dados fidedignos do mercado de trabalho, principalmente no que diz com os níveis salariais e de empregabilidade, os planos de enfrentamento prevejam atuação estatal e privada, se possível, baseada na responsabilidade social corporativa. As conexões faltantes, que o plano poderia ensejar podem ser novas ou já existentes ou em elaboração.

Por oportuno, é de se sublinhar que há duas disposições do estatuto da igualdade racial que jamais foram cumpridas, mas que poderiam ser impactantes se melhor compreendidas pelo Poder Executivo federal.

Está-se a falar dos artigos 40 e 39, §3º do diploma já mencionado. O primeiro estabelece que o conselho deliberativo do fundo de amparo ao trabalhador (CODEFAT), que dispõe de bilhões de reais, deveria destinar recursos financeiros para receber programas, projetos e ações vinculadas à igualdade racial no mercado de trabalho. Todavia, tendo entrado em vigor no ano de 2.010, o instrumento e a disposição indicada não foram bastantes para que fosse destinado sequer um real para se ver cumprida a norma que se extrai do artigo já indicado. O segundo artigo, por seu turno, prevê que o poder público estimulará, por meio de incentivos, que as empresas tenham programas, projetos e ações voltadas à igualdade racial no mercado de trabalho. Transcorrido prazo mais do que razoável, não se promoveu a regulamentação do artigo sub oculis e, somente por meio dela, estarão definidos os reais benefícios fiscais e as obrigações que cumpridas os ensejarão.

Além de auxiliar na promoção desses dois artigos, o plano em liça poderia estimular a criação de grupos de trabalho regionais e nacionais aos quais competiria analisar o mercado de trabalho e propor mecanismos, instrumentos legais, articulações, cursos e eventos com o fim de alterar os dados que demonstram como o mercado de trabalho é sensível à raça e ao gênero das pessoas.

Tal proceder já foi adotado pelo Estado do Rio Grande do Sul.

Por intermédio do Decreto estadual número 53.505/2017, foi instituído grupo de trabalho que reúne entidades empresariais, secretarias estaduais, universidades, movimento social, Procuradoria-Geral do Estado e OAB/RS, visando a alterar positivamente o mercado de trabalho ao combater as influências negativas da raça e do gênero das pessoas.

Por fim, no que pertine à segurança pública, mister, como premissa, que seja examinada a legislação atinente aos crimes raciais. Isso porque à legislação atual tem conduzido a quase 70% de absolvição, desconsiderando-se a ocorrência de suspensão condicional do processo no caso de injúria racial e nos de crimes raciais cuja pena mínima seja de 1 ano.

Oportuno dizer que, sob o silêncio do movimento social, tramita o novo código penal. O respectivo anteprojeto é resultado do trabalho de um grupo de profissionais que parece ter desconsiderado a flagrante ineficácia dos textos das leis hoje em vigor, pois os reproduziu parcialmente.

CONCLUSÕES

A mortalidade de jovens negros e pobres, que atinge taxas altíssimas, está inserida em um quadro de racismo sistêmico. Por via de consequência, é inegável que o ataque deverá ser também sistêmico, ou seja, vinculado às possíveis soluções atinentes às desigualdades existentes na educação, no mercado de trabalho, na segurança, nos espaços de poder e outros espaços nos quais o racismo gere reflexo.

Assim sendo, o combate deverá ser abrangente para que surta efeito. Portanto, o plano de enfrentamento que se pretende ver previsto na Carta Magna deverá considerar os processos relativos à tomada de decisão, à constituição e à implantação de políticas públicas, as concepções de desenvolvimento, de eficiência e de eficácia, a importância da responsabilidade social corporativa e o conceito e a operatividade da stakeholder network value.

Em síntese, é insuficiente a constituição de soluções legislativas para problemas extremamente complexos, devendo se reforçar a indispensabilidade do planejamento para a satisfação de direitos fundamentais que cujas efetividade e  proteção são diuturnamente negadas para uma parcela significativa da população brasileira.

A PEC 129/2015 e o PL /2015 abrigam o mérito de reavivar questões socialmente relevantes, merecendo que a estrategia e a articulação sejam amplas a ponto de mobilizar um número expressivo de atores pertencentes ou não à comunidade negra. Impositivo, por conseguinte que a caminhada que se quer exitosa siga passos capazes de levar a resultados e impactos concretos positivos.

JORGE LUÍS TERRA DA SILVA

PROCURADOR DO ESTADO/RS

[1]WAISELFIESZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência contra os jovens do Brasil, Rio de Janeiro:  Garamond, 1.998.

[2]WAISELFIESZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2.016 – Homicídios por arma de fogo  no Brasil, Rio de Janeiro:  Garamond, 2.016

[3]WAISELFIESZ, Julio Jacobo. Mapa…

[4]. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) https://www.unicef.org/publications/files/Violence_in_the_lives_of_children_and_adolescents.pdf, (acessado em 4/12/2017)

[5]KLIKSBERG, Bernardo. Repensando o Estado para o Desenvolvimento Social, superando dogmas e convencionalismos. Editora Cortez. 2ª Edição. São Paulo (Coleção Questões  da Nossa Época, v. 64).

[6]SIMON, Herbert Alexander. Rational Decision-Making in Business Organizations. Nobel Memorial Lecture, 8 December, 1978.

[7]COUTO E SILVA, Almiro. Problemas Jurídicos do Planejamento. Revista da PGE-RS, Cadernos de Direito Público em homenagem a Almiro do Couto e Silva, número 57, pags. 127-161. Dezembro de 2003.

[8]  REZENDE, Fernando, Planejamento no Brasil: auge, declínio e caminhos para a reconstrução/ Fernando Rezende. Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2010. (Texto para Discussão, 4).

*ESCRITO EM MARÇO DE 2019

15 de abril de 2024

E se o SUS fosse igual ao SINAPIR ?

O racismo já foi considerado apenas como fruto de uma visão particular do mundo e das pessoas. Assim sendo, os atos racistas seriam comportamentos individuais dissociados dos entendimentos compartilhados por coletividades e por gerações.

Com o tempo, passou-se a compreender esse fenômeno como resultado das dinâmicas sociais nas quais nos envolvemos desde a nossa socialização. Dessa forma, os atos racistas estariam ligados ao círculo comprovadamente vicioso : desvalorização de determinados grupos, discriminação desses grupos, geração de desigualdades e associação dessas pessoas a características negativas.

Então, se empregando expressões como racismo institucional ou racismo estrutural, há a compreensão de que esse fenômeno não seria fruto de uma visão particular de vida, qual seria o primeiro passo para o necessário enfrentamento?

Parece lógico que, se o racismo é institucional ou estrutural, o enfrentamento também deve ser. Em síntese, se o ataque é sistemático ou sistêmico, a proteção e a defesa também devem ser.

No Brasil, contudo, transcorridos pouco mais de treze anos da criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), houve a adesão de pouco mais de 2% dos 5.570 municípios brasileiros. Esse quadro, a ser enfrentado pelos atuais gestores do Ministério da Igualdade Racial, merece a atenção dos movimentos negros e da sociedade brasileira em geral.

Tal como ocorre com o cumprimento da obrigação de ensinar as histórias e as culturas africanas, afrobrasileiras e indígenas nas escolas privadas e públicas da rede básica, a adesão e a participação geram vantagens para os municípios e para a sociedade em geral. Basta se compreender que o racismo gera efeitos antidemocráticos, antieconômicos e contrários ao desenvolvimento. Em outras palavras, basta perceber que a influência do racismo gera falta de retorno adequado aos investimentos na educação e na saúde, condenações ao pagamento de indenizações por atos discriminatórios, altas taxas de desemprego, desgaste institucional dos órgãos de segurança e de empresas, ineficácia de políticas de turismo, evasão escolar, baixa performance escolar, falhas nos sistemas de busca e manutenção de talentos das empresas privadas, vinculação de marcas empresariais a práticas discriminatórias, injustiças nos sistemas de educação, segurança e de justiça, etc.

O parcial rol de fatos listados acima é capaz de mostrar as vantagens de os Estados e Municípios aderirem e, mais do que isso, participarem do SINAPIR. Também servem para que governos tenham atenção ao que devem firmar em seus acordos de resultados e o que empresas podem fazer para que tenham sustentabilidade e até maiores ganhos institucionais e financeiros.

Espera-se, portanto, que o Ministério da Igualdade Racial execute modo de aceleração do número de adesões pontuando as vantagens institucionais, sociais e econômicas para o público-alvo, ou seja, para Estados e Municípios. Isso porque não é possível implementar políticas sem pensar em intersetorialidade e em intergovernabilidade.

Se, durante a pandemia de covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) fosse integrado por aproximadamente 2% dos municípios brasileiros, é possível inferir que eu ou você não estaria escrevendo ou lendo esse artigo nesse momento.

Jorge Terra

Diretor de Relações Institucionais do Instituto Acredite.

Porto Alegre, 19.03.2024

20 de março de 2024

Governantes, não repetir as ausências já é inovar!

Não repetir as ausências já é inovar!

Participações que não resistem ao fim dos programas eleitorais tem sido a regra. Em outros termos, aqueles que não são brancos, nem homens e que não se apresentam como heterossexuais não costumam compor as equipes governamentais independentemente do matiz ideológico que seja predominante. Essa não escolha se dá mesmo quando os preteridos, filiados ou não a partidos políticos, são dotados de sabida capacidade.

Em época na qual há países, pautados pela eficiência e pela eficácia, que examinam se a coerção e se a influência podem efetivamente ser utilizadas como formas de se atingir resultados positivos, pensar na composição do Ministério ou do Secretariado como um estímulo (nudge) para a sociedade é algo que pode dar certo.  Não é mais admissível que as inconformidades veiculadas com ênfase em campanhas eleitorais, passados poucos meses, tornem-se o repetir de uma cultura que não conduz ao avanço.

O que se transmite para as pessoas quando a equipe governamental tem o perfil de outras tantas que prometeram mudança? O engajamento dos numerosos segmentos sociais é realmente considerado importante? A não escolha revela não apenas eventual preconceito de quem está a escolher, mas reforça preconceitos e atitudes repletas de vieses. A diversidade no seio das instituições além de levar à aptidão de conhecer melhor os anseios do corpo social traz outras vantagens? É possível obter o engajamento das pessoas se elas identificam comportamentos realmente transformadores por parte dos gestores?

Cidadãos engajados são capazes de melhor compreender medidas governamentais duras, bem  como de apresentar  formas de melhoramento ou de aprofundamento. Já os que são tratados como meros eleitores, viram opositores nas primeiras adversidades e não agem como comprometidos com a melhoria da situação.

E é bom ter ciência de que não cumpre o requisito da influência positiva ter, em equipes com mais de vinte integrantes, apenas um que não seja enquadrável no costumeiro padrão. Isso pode ser algo mais negativo, pois demonstra que o chefe da equipe sabia que deveria compor sua equipe de forma diferente, mas, sem coragem, tentou ludibriar a sociedade. Por óbvio, não é bastante a preocupação com a composição das equipes, pois não é raro ver pessoas integrantes de gestões tomarem ou concordarem com medidas que violam direitos dos grupos a que pertencem com o fim de manterem suas posições. A preocupação  com a formação das equipes é um primeiro e valioso passo para a mudança de prioridades e de formas de decidir.

Jorge Terra.

19 de março de 2024

Da imagem à ação

Ao ler obra do jurista Pontes de Miranda na qual ele comentava o art. 138 da Constituição de 1934 que, dentre outras coisas, previa o estímulo estatal à educação eugênica, chamou a atenção o seu silêncio quanto a esse ponto. Intrigado, li outra obra do mesmo autor. Nela, ele tratou sobre o racismo dirigido aos negros. Curioso é que, embora vivendo aqui já pudesse constatar tal situação, a abordagem referida foi trazida após o jurista morar por dois anos nos EUA.

Similar fenômeno parece acometer outros brancos no Brasil. Impactados pelas notícias relativas às manifestações antirracistas nos EUA, parecem começar a perceber parte do que instituições confiáveis demonstram há anos. Agora, talvez sejam capazes de se dar conta do trato inadequado de questões ligadas à igualdade, à história, à cultura e aos direitos fundamentais no campo da educação. Quem sabe até venham a perceber a injusta distribuição de equipamentos públicos e da estrutura da segurança em nossas cidades? Quem sabe possam enxergar a ocupação assimétrica dos espaços de poder e dos postos de trabalho com maior remuneração?

Fortes imagens oriundas do exterior auxiliaram na diminuição da invisibilidade da situação dos negros no Brasil. Elas chegaram simultaneamente com notícias sobre mortes ocorridas em nosso solo, reforçando as ações dos movimentos negros locais e descortinando um Brasil em desvantagem. Todavia, o despertar é insuficiente. É preciso realizar.

Há numerosas evidências dos danos decorrentes dos fenômenos raciais, mas saber que elas existem não significa vontade de buscar soluções, tampouco que o que aflige a comunidade negra adentrará as agendas políticas. É imprescindível que, nos âmbitos público e privado, haja comprometimento, planejamento, execução, avaliação, atenção à infraestrutura e foco em resultados e em impactos concretos positivos. Do contrário, as imagens referidas não serão convertidas em ação, restando como vagas lembranças ou como notícias impactantes e fugazes.

Jorge Terra

Procurador do Estado/RS

Presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/RS

  • postado em Junho de 2020 e publicado no Jornal Zero Hora de Porto Alegre/RS na mesma época.

17 de janeiro de 2024

O EVIDENTE RACISMO

Os governos têm se revelado incapazes de criar e de implementar políticas públicas eficientes e eficazes quando se trata da questão racial. Parece faltar leitura da Constituição, pois nela há previsão de objetivos, de obrigatoriedade de planejamento, de eficiência e de eficácia. A opção, contudo, recai no improviso, no resultado insuficiente e na não transformação.

Falar em política baseada em evidências não é novidade e é até lógico quando se sabe que a concepção de uma politica inicia com a identificação de um problema. A questão é saber o que fazer com os dados, não reproduzindo métodos inexitosos e injustos.

Ainda se crê que ter lei que diga o que fazer ou não fazer seja o bastante. Nesse ponto, já há uma demonstração de que não se observam as evidências, pois, sabidamente, há numerosas leis descumpridas por governos, por empresas e por pessoas.

2024 é o último ano da década internacional dos afrodescendentes e não são perceptíveis mudanças significativas no país. Há objetivos de desenvolvimento sustentável que passam pelo enfrentamento do racismo, mas como atingir metas ousadas pouco fazendo ou fazendo o que sempre se fez?

Gestores públicos não percebem que pessoas são mortas, que pessoas não têm empregos descentes, não têm níveis satisfatórios de educação, de saúde e de segurança? Gestores privados não percebem que a excessiva desigualdade pode ser ruim para a sustentabilidade dos negócios?

Há como fazer melhor. Há como conceber e implementar políticas privadas e públicas eficientes e eficazes objetivando a igualação includente e o desenvolvimento. O desafio é grande e exige que cada setor da sociedade assuma suas responsabilidades, tendo o firme propósito de levar adiante ações concretas e articuladas.

O entendimento de que o racismo é antidemocrático, antieconômico e desigualizante deve ser diretriz para tomadas de decisões e não a base de discursos não sustentados pela prática. A concretude aguardada não pode mais ser adiada.

         Jorge Terra,

Diretor de Relações Institucionais do Instituto Acredite

*escrito em 20/12/2023.

25 de maio de 2023

Injustiça intergeracional

Mediante caso de racismo que gere repercussão, governo, empresa ou pessoa que tenha relação com o caso dedica algumas semanas de atenção à temática, sempre com o propósito de mostrar que não é racista. Essa visão limitada impede perceber que o antirracismo deve ser empreendido como um megaprojeto, produzindo enfrentamento estrutural e estruturante. Quando se trata de estradas, de energia ou de tecnologia, governos facilmente identificam a necessidade de infraestrutura para construir soluções adequadas. Todavia, diante de injustiça intergeracional praticada há séculos contra determinados grupos raciais, não buscam técnicas pautadas pela eficiência e pela eficácia. Empresas, embora não seja novidade que a diversidade interna gera competitividade, engajamento e ganhos financeiros, persistem nos mesmos caminhos e buscando os mesmos perfis para seus quadros de gestores, além de não se comprometerem com o avanço.

Há, ainda, aqueles que acreditam que cotas e leis sejam os instrumentos suficientes para gerar mudança. Bom destacar que as cotas são reservas de vagas e, isoladamente, não envolvem nenhum investimento público ou privado. Leis de cunho racial como a que obriga a ensinar as histórias e as culturas africanas, afrobrasileiras e indígenas nas escolas, bem como o estatuto da igualdade racial são descumpridas sem remorso algum. Evidentemente, as populações negra e indígena são as que mais sofrem em decorrência do racismo no Estado e no país. Porém as consequências econômicas e políticas do racismo podem atingir a sociedade como um todo.

Atos meramente simbólicos e “lives” não mudam o mundo. A sociedade perde talentos diariamente e se afasta do desenvolvimento sustentável a passos largos. Problemas complexos demandam soluções complexas. A questão racial não pode ficar em um canto das instituições. Ela deve ser um critério de tomada de decisão. É crucial promover planejamento, monitoramento, avaliações e estrutura. A vida não pode esperar.

Jorge Terra – Diretor de relações institucionais do Instituto Acredite.

acrediteinstituto@gmail.com

15 de maio de 2021

Em 14.05.2030

Em 14.05.2021, possivelmente faria menos sentido falar sobre desigualdade racial se o Imperador não tivesse dissolvido a Assembleia Constituinte de 1823, que receberia a representação na qual José Bonifácio, mesmo externando preconceitos, previa a abolição da escravatura e o alcance de terras para que os ex-escravizados tivessem sustento e para que a economia não mais se baseasse no latifúndio.

O mesmo entendimento se poderia ter se, inclusive em duas Constituições da década de trinta, não ficasse estampado o ideário eugenista. Igualmente se concluiria se, na década de sessenta, o então Ministro das Relações Exteriores não tivesse dito que, embora tenha sido a primeira nação a assinar a convenção contra todas as formas de discriminação racial, o Brasil dela não necessitava já que aqui todas as raças viviam em harmonia. Aliás, a situação seria diferente da atual se o Brasil não informasse, por meio dos relatórios encaminhados para a ONU entre 1965 e 1995, que aqui não havia desigualdade racial?

Em verdade, não é seguro afirmar que teríamos outra nação se tais medidas tivessem sido implementadas ou se os não negros não fossem quase que hegemônicos na condução dos destinos e na composição dos postos de comando de empresas e de governos. Todavia, é razoável afirmar que negar ou minimizar a desvalorização, a discriminação e a desigualização excludente de segmento que supera 16% da população gaúcha é reforçar diariamente os efeitos do comércio transatlântico de escravizados e da longa escravização.

Como sociedade, já ultrapassamos o momento da reflexão, da conscientização e da espera pela retirada de véus dos olhos de quem se nega a enxergar. Vivemos o tempo do planejamento e das ações eficientes e eficazes que sejam capazes de reduzir as desigualdades flagrantes em numerosos domínios. Do contrário, os dias 14 de maio dos próximos anos permanecerão semelhantes ao do corrente ano.

Jorge Terra

Presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/RS

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