Jorge Terra

25 de maio de 2023

Injustiça intergeracional

Mediante caso de racismo que gere repercussão, governo, empresa ou pessoa que tenha relação com o caso dedica algumas semanas de atenção à temática, sempre com o propósito de mostrar que não é racista. Essa visão limitada impede perceber que o antirracismo deve ser empreendido como um megaprojeto, produzindo enfrentamento estrutural e estruturante. Quando se trata de estradas, de energia ou de tecnologia, governos facilmente identificam a necessidade de infraestrutura para construir soluções adequadas. Todavia, diante de injustiça intergeracional praticada há séculos contra determinados grupos raciais, não buscam técnicas pautadas pela eficiência e pela eficácia. Empresas, embora não seja novidade que a diversidade interna gera competitividade, engajamento e ganhos financeiros, persistem nos mesmos caminhos e buscando os mesmos perfis para seus quadros de gestores, além de não se comprometerem com o avanço.

Há, ainda, aqueles que acreditam que cotas e leis sejam os instrumentos suficientes para gerar mudança. Bom destacar que as cotas são reservas de vagas e, isoladamente, não envolvem nenhum investimento público ou privado. Leis de cunho racial como a que obriga a ensinar as histórias e as culturas africanas, afrobrasileiras e indígenas nas escolas, bem como o estatuto da igualdade racial são descumpridas sem remorso algum. Evidentemente, as populações negra e indígena são as que mais sofrem em decorrência do racismo no Estado e no país. Porém as consequências econômicas e políticas do racismo podem atingir a sociedade como um todo.

Atos meramente simbólicos e “lives” não mudam o mundo. A sociedade perde talentos diariamente e se afasta do desenvolvimento sustentável a passos largos. Problemas complexos demandam soluções complexas. A questão racial não pode ficar em um canto das instituições. Ela deve ser um critério de tomada de decisão. É crucial promover planejamento, monitoramento, avaliações e estrutura. A vida não pode esperar.

Jorge Terra – Diretor de relações institucionais do Instituto Acredite.

acrediteinstituto@gmail.com

25 de agosto de 2022

NEABI, EFICIÊNCIA E EFICÁCIA.

Nem sempre é necessário produzir complexos e extensos discursos. A complexidade pode ser inerente ao tema. Logo, pode ou não estar presente nas manifestações. Já a longa extensão pode tornar mais distante o resultado visado pelo falante e gerar falta de engajamento do ouvinte.

Hoje, inauguram-se os trabalhos do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) da unidade de Porto Alegre da UNISINOS.

Além de saudações de estilo e de cumprimentos pela iniciativa, o que pode ser apresentado ou sugerido de maneira simples, elegante e breve?

Tomemos o nome como um guia: trata-se de um núcleo de estudos. Portanto deve promover pesquisas, verificar quais pesquisas estão sendo empreendidas nos programas de pós-graduação e nos grupos de pesquisas, buscar e analisar dados pertinentes a numerosas áreas de atuação humana, articular-se com corpo docente e com corpo discente, estimulando estudos e ações práticas inovadoras. Deve também ter atenção ao que está feito ou deixado de fazer em outras instituições congêneres no mundo e no Brasil.

Esse trabalho não pode ser limitado aos interesses, direitos, deveres, necessidades e esforços da população negra local ou internacional. Desconsiderar a importância de também se dedicar atenção à população indígena é hierarquizar raças e culturas e essa hierarquização é o que se deve combater interna e externamente.

Por fim, não se pode olvidar de que o núcleo está vinculado à uma instituição de ensino. Daí decorre a necessidade de, longe de se pretender ter o monopólio do trato da questão racial, estimular que número crescente de Professores, de pesquisadores e de estudantes tenham interesse em promover ações concretas e estudos. Por outro lado, o núcleo pode, trabalhando de maneira técnica com os dados disponíveis, criando informações primárias ou trazendo notícias contextualizadas de iniciativas levadas a efeito em outros locais, ser indutor de mudanças governamentais, empresariais ou da sociedade em geral.

Para que os propósitos referidos sejam atingidos de maneira satisfatória, é imprescindível a realização de planejamento. Sim, é inarredável pensar sobre estrutura, metodologia, objetivos, metas, indicadores, sistema de monitoramento e de avaliação.

Não reproduzir caminhos que conduziram a um quadro de estrutura jurídica e de políticas públicas quase que ineficazes, bem como de políticas privadas quase que inexistentes e de pouca permeabilidade ao enfrentamento dos fenômenos raciais e de outras formas de discriminação nos espaços públicos e privados pode ser uma importante diretriz de um NEABI.

Os problemas decorrentes do persiste ciclo vicioso que inicia com a desvalorização de determinados grupos, gera discriminação e redunda em desigualdade é conhecido. A questão aqui diz com as soluções que esse NEABI será capaz de produzir e com sua capacidade de auxiliar ou de induzir que governos, empresas, movimentos sociais e a Universidade produzam.

Milhões de pessoas dependem dos bons trabalhos dos NEABIs e que esse seja eficiente, eficaz e transformador.

Jorge Terra.

Instituto Acredite

24 de agosto de 2021

O antirracismo como um megaprojeto

    A sociedade entende o racismo como estrutural. Apesar disso, não empreende o inerente combate estrutural. Há quem atue apenas no campo das artes, exclusivamente no campo das instituições públicas, nas relações de trabalho ou somente no campo da política. Não é surpreendente, portanto, que a eficácia seja baixa nesses e em outros domínios.

  Instado, em evento da Rede Afro-gaúcha de profissionais do Direito, em 2010, o então chefe do Estado-Maior da Polícia Militar iniciou sua fala dizendo: “A polícia não recruta seus homens em Marte…”. Ele estava dizendo que o racismo estava em todos os espaços e não apenas na segurança.

  É grave a inação sistemática ou a ação pontual contra o racismo que opera no âmbito supracitado quando se exigiria planejamento, estrutura, controle, fiscalização e avaliação eficientes. Também o é o fato de haver outros espaços nos quais o racismo não é adequadamente enfrentado. Aliás, em termos gerais, pode-se afirmar que não somos preparados para ser cidadãos e profissionais antirracistas, antimachistas, antihomofóbicos, antigordofóbicos, anticapacitistas e antipreconceituosos etários em casa, na rede básica e no ensino superior. Por isso que, até no campo da inovação tecnológica, há fortes vieses racistas.

  A antidiscriminação deve ser concebida e implementada como um megaprojeto diante da complexidade do tema, dos custos sociais e políticos. Ela perpassa pela mudança de hinos, de nomes de ruas e de projetos político-pedagógicos, pela avaliação de políticas públicas e privadas, pela atenção à intergeracionalidade, pela formação de uma burocracia representativa, pelo equilíbrio nos centros de tomada de decisão, pelo investimento em infraestrutura, pelo trabalho com valores humanitários e com ciências comportamentais.      

  Não tem sido suficiente um conjunto de leis não cumpridas e de políticas não focadas em resultados e impactos concretos. É imprescindível e plenamente possível abandonar o discurso divorciado da concretude e mirar no desenvolvimento e na justiça.

Jorge Terra

Procurador do Estado/RS                                                07.08.2021.

26 de maio de 2021

O que é reconhecimento ?

       Reconhecimento é consideração. É valorização por contribuição aduzida ou por esforço empregado em área de atuação humana tida como relevante. Nesse sentido, ao lado do desenvolvimento e da justiça, o reconhecimento foi estabelecido como um dos pilares da década internacional dos afrodescendentes instituída pela Organização das Nações Unidas.

    Ocorre que, transcorridos em torno de seis anos e meio do início dessa década, o nível de reconhecimento da contribuição social, econômica e cultural da população negra no Brasil não parece ter se elevado. Não se pode dizer que houve por parte de governos, empresas e sociedade, planejamento, ação ou esforço transformador.

    Nesse quadro, constatável é a ineficácia de ser signatário de atos internacionais, de editar disposições constitucionais e legais sem atenção à concretude e sem legítimo interesse em ser efetivo.

    Aliás, oportuno registrar que reconhecimento é um problema que aflige a população negra em outra dimensão. Sim, há numerosos casos nos quais pessoas negras inocentes são reconhecidas como autoras de crimes, impondo-se-lhes as dores da injustiça, da responsabilização por atos não cometidos e da privação de liberdade.

    Não há a ilusão de que, nos três anos e meio restantes da década, ter-se-á a efetividade não observada em pouco mais de 60% dela. Pode-se dizer que deveria ter sido instituído comitê de monitoramento pela ONU; pode-se dizer que se deveria ter instituído sistema de avaliação; pode-se dizer que a ONU não foi tão incisiva quanto deveria ter sido. O que certamente deve-se dizer é que, no Brasil, não houve vontade alguma de se promover alterações institucionais, comportamentais, educacionais, culturais, sociais, políticas e jurídicas, pois a manutenção da situação vivenciada desde o final da escravatura, ou seja, a falsa hierarquia de raças e de culturas, interessa ao grupo que quase aniquilou os indígenas e comercializou os negros por longo período.

A conclusão inarredável é que, sem reconhecimento, não há reparação, desenvolvimento e justiça.

Jorge Terra.

29 de abril de 2021

Água fria, água quente e água superquente.

Se a intenção é de se tomar um chá, a água fria pode não ser a adequada. Com a mesma intenção, pode não ser também a superquente, pois perde-se mais tempo até se alcançar determinada temperatura e depois se terá de esperar que ela diminua um pouco para se poder beber o chá. Além disso, o custo será maior do que o de se apagar o fogo ou de se desligar a chaleira elétrica quando a água já estiver quente.

No âmbito criminal, o racismo é tratado com água fria, ou seja, as leis aplicáveis e aplicadas são insuficientes, quase que ineficazes. E o são em descompasso com o que determina a Constituição e com os compromissos internacionais que o Brasil assumiu ao longo do tempo.

Já me deparei com frases como as seguintes: “Eu, como uma pessoa de esquerda, tenho dificuldade em aceitar a ideia de se agravar penas!” e “Eu, como um abolicionista penal, não concordo com o agravamento de penas!”.

A questão é que, ao meu sentir, deve-se partir de um mínimo de necessidade ou de suficiência. Em outras palavras, excesso há quando a medida tomada supera a que é suficiente para compelir à inocorrência de fato que se considera nocivo. Se há evidência de que o padrão mínimo não é atingido, não cabe se falar em excesso (em 2006 e em 2007, 69,9% das pessoas que responderam por crime de racismo foram absolvidas segundo o LAESER/UFRJ).

Diante dessas frases, vieram-me à mente algumas indagações: em se tratando de comportamento humano, é possível ter uma regra imutável? Podemos ter regras fixas e lineares ou devem elas ser adaptáveis ao caso concreto? E o objetivo republicano de diminuir desigualdades? Agravamento de pena em caso de crime contra o patrimônio é o mesmo do que agravamento no caso de racismo? Em se tratando de crime de racismo, qual é o pólo vulnerável? Há evidências de que o Direito Penal está contribuindo para a diminuição de uma prática que gera redução de oportunidades, danos psicológicos graves e diminuição do tempo de vida? Em seu aspecto objetivo os direitos fundamentais justificam a criminalização de condutas e isso não se aplica à questão racial? E a tão falada e aplicada proporcionalidade?

Bom destacar que uma das conclusões da Conferência de Durban foi a de que deveriam ser promovidas ações penais, sociais, econômicas e educacionais. E quando há evidências de que as medidas não estão sendo suficientes, é preciso repensar e agir. Daí a importância de serem realizadas avaliações (ex ante e ex post) de maneira técnica e de se considerar as evidências obtidas por meio de experimentos e por meio de observação.

Não é raro também se creditar ao processo educativo a responsabilidade quase que integral de resolver a questão. Outras perguntas me rondam: sabes exatamente o que é pensado e feito nas universidades, nas escolas privadas e públicas no que pertine às relações etnicorraciais? Com os ensinamentos que temos em casa, com os reforços das comunicações e da linguagem, com a ausência da estimuladora presença negra nos Ministérios e nos Secretariados e com hinos constantemente cantados nos quais se afirma que somente é escravo aquele que não tem virtude, quanto tempo seria necessário para haver mudança?

Assim como não serve a água fria, não nos serve a água superquente, ou seja, não basta creditar exclusivamente ao Direito Penal a responsabilidade pela mudança. Aliás, condutas são consideradas como crime quando outras falham ou se revelam insuficientes.

Há de se saber que se está tratando não com o homem econômico, ou seja, com aquela pessoa que realiza constantemente raciocínio de custo-benefício e move-se por impulsos racionais, estabelece julgamentos e toma decisões centrado exclusivamente na situação problema. A ciência comportamental já demonstrou que não somos assim: podemos não comprar um calçado para irmos trabalhar de forma adequada por o considerar caro e, na semana seguinte, comprar um tênis mais caro para um filho com o fim de ver o seu sorriso ou porque não tínhamos acesso a bens materiais mais caros quando éramos crianças ou adolescentes.

Então o que seria tido como a água na temperatura adequada?

Ao meu ver, seria não creditar toda responsabilidade a um domínio. Precisa-se agir no mercado de trabalho, na educação, no sistema de justiça, no sistema de segurança, na cultura, na saúde e na política. Há de se afastar o crime de injúria racial, pois injuriar é macular, é ofender. Quando se pratica o que se hoje considera injúria racial, pretende-se, por meio de expressões, valendo-se de um passado recente e de uma desigualdade presente, colocar pessoas em um patamar inferior de cidadania, comparando-as a animais ou a coisas. Além disso, há de se agravar as penas referentes às numerosas formas de racismo, considerando aqui também, as ofensas raciais, pois hoje a pena mínima de um ano conduz à suspensão condicional do processo e à sensação de impunidade. Além disso, há de se readequar textos e de se qualificar interpretações (candidatos a funções políticas não estão no exercício de sua peculiar liberdade quando comparam pessoas negras a bois ou dizem que elas não prestam), pois, conforme já constatou em pesquisa o LAESER, já houve período no qual as absolvições alcançaram o patamar de pouco mais do que 69% (nos casos nos quais o processo não foi suspenso por aplicação da lei 9099/95) . Por fim, há de se ter atenção à essa questão. Atenção essa que impeça que um grupo de juristas não apresente anteprojeto de lei referente ao futuro Código Penal no qual o texto não represente mera reprodução de textos existentes e ineficazes com a redução de pena de 1 a 3 anos e multa para de 1 a 3 anos. Essa atenção, aqui entendida como relevância que se dá a algo ou a alguém, deve ser em nível tal que impeça que o Senador proponente do projeto de lei decorrente do trabalho do citado grupo de juristas o apresente sem pena alguma. Sim, o projeto foi apresentado sem pena alguma referente ao crime de racismo (artigo 472 do projeto de lei).

escrito em 20 de novembro de 2019.

JORGE TERRA – 05.10.2019.

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