Jorge Terra

26 de maio de 2021

O que é reconhecimento ?

       Reconhecimento é consideração. É valorização por contribuição aduzida ou por esforço empregado em área de atuação humana tida como relevante. Nesse sentido, ao lado do desenvolvimento e da justiça, o reconhecimento foi estabelecido como um dos pilares da década internacional dos afrodescendentes instituída pela Organização das Nações Unidas.

    Ocorre que, transcorridos em torno de seis anos e meio do início dessa década, o nível de reconhecimento da contribuição social, econômica e cultural da população negra no Brasil não parece ter se elevado. Não se pode dizer que houve por parte de governos, empresas e sociedade, planejamento, ação ou esforço transformador.

    Nesse quadro, constatável é a ineficácia de ser signatário de atos internacionais, de editar disposições constitucionais e legais sem atenção à concretude e sem legítimo interesse em ser efetivo.

    Aliás, oportuno registrar que reconhecimento é um problema que aflige a população negra em outra dimensão. Sim, há numerosos casos nos quais pessoas negras inocentes são reconhecidas como autoras de crimes, impondo-se-lhes as dores da injustiça, da responsabilização por atos não cometidos e da privação de liberdade.

    Não há a ilusão de que, nos três anos e meio restantes da década, ter-se-á a efetividade não observada em pouco mais de 60% dela. Pode-se dizer que deveria ter sido instituído comitê de monitoramento pela ONU; pode-se dizer que se deveria ter instituído sistema de avaliação; pode-se dizer que a ONU não foi tão incisiva quanto deveria ter sido. O que certamente deve-se dizer é que, no Brasil, não houve vontade alguma de se promover alterações institucionais, comportamentais, educacionais, culturais, sociais, políticas e jurídicas, pois a manutenção da situação vivenciada desde o final da escravatura, ou seja, a falsa hierarquia de raças e de culturas, interessa ao grupo que quase aniquilou os indígenas e comercializou os negros por longo período.

A conclusão inarredável é que, sem reconhecimento, não há reparação, desenvolvimento e justiça.

Jorge Terra.

20 de março de 2021

Sharpeville´s de ontem e hoje

Sharpeville´s de ontem e hoje 

Por Muryatan Santana Barbosa

No último dia 21 de março tivemos mais um Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Talvez poucos tenham tido notícia porque em geral costumou-se “celebrar” o  20 de novembro, como o dia da Consciência Negra. Mas trata-se de uma data importante. Ela foi instituída em 1969 pela Organização das Nações Unidas, tendo por referência o “Massacre de Sharpeville”, na África do Sul, ocorrido em 21 de março de 1960. 

O “Massacre de Sharpeville” foi o assassinato de dezenas (os dados oficiais falam de sessenta e nove mortos e cento e oitenta feridos) de manifestantes anti-apartheid pela polícia sul-africana, em uma manifestação ocorrida na cidade de mesmo nome, próxima a Johannesburg.  

A manifestação tinha sido organizada pelo Congresso Pan-Africano, um partido que havia sido recém-formado (1959) na África do Sul, após uma dissidência no Congresso Nacional Africano.  O ato era uma afronta ao apartheid. Em particular, contra a “Lei do Passe”, pela qual os sul-africanos negros eram obrigados a portar uma caderneta em que se registrava sua circulação diária. Em suma, era um ato pacífico, de desobediência civil. Algo muito comum nos movimentos políticos negro-africanos à época, inspirados pelas táticas pacifistas de Gandhi, que foram importantes para a independência indiana (1947).  

Dada a cobertura internacional que foi dada ao fato, o “Massacre de Sharpeville” acabou virando-se contra o próprio regime sul-africano. A realidade do apartheid tornou-se mais conhecida mundialmente. Pegou mal. Surgiram protestos e críticas. Era claro que eles tinham exagerado. E  foi isso que o governo sul-africano ouviu de seus amigos, estadunidenses e israelenses, que também estavam à época buscando formas de modernizar seus colonialismos internos. Não se podia mais administrar povos não europeus apenas pela força da Lei, via segregacionismo aberto. Era muito ostensivo. Fazia-se preciso formular algo mais sofisticado, que foi sendo construído a posteriori. 

O mundo de hoje dá razão a isso. No Brasil ocorre uma “Sharpeville” por dia. São cerca de cinquenta jovens negros mortos por homicídio diariamente, sem que isto, aparentemente, nada tenha a ver com a “raça” destes indivíduos. Entre 2002 e 2012, caiu em 33% o número de homicídios de jovens brancos, ao passo que cresceu em 23% o número de homicídios de jovens negros. Estes já são hoje 75% do total dos homicídios de jovens no país. Seria isto apenas uma consequência da desigualdade “social”, da pobreza, da falta de oportunidades? É óbvio que não. A raça foi aparentemente substituída pela vitimização, como forma de controle social. Aí está, talvez, a grande contribuição brasileira à “civilização universal”, uma ideia tão cara a Gilberto Freyre e seus correligionários. 

Muryatan Santana Barbosa é Professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.

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