Jorge Terra

31 de agosto de 2018

DOIS PARÁGRAFOS SOBRE A CAMPANHA ELEITORAL

A campanha eleitoral, no que diz com a igualdade racial, em nada se renova: há políticos que até manifestações preconceituosas já fizeram, sem se desculpar, apresentando imagens de pessoas negras. Há, também, políticos que nada ou pouco fizeram nesse campo, sem referir nada de concreto, dizendo que no futuro farão. Há, ainda, os que querem ser políticos dizendo-se representantes da causa mesmo sem ter participado de nenhum movimento ou grupo pertinente à questão ou mesmo tendo participado de forma desagregadora e destrutiva.
Toda atenção é necessária na escolha, pois já vimos governos de esquerda e de direita com a mesma falta de estrutura para tratar da questão, bem como com inexpressiva ou inexistente presença de pessoas negras no secretariado ou no ministério. Além disso, já se viu parlamentares ou chefes do executivo que assumiram posições contrárias aos interesses e aos direitos da população negra do Município, do Estado ou do país.

 

Jorge Terra.

26 de agosto de 2018

Atenção com o futuro sem esquecer do passado.

Assim estava disposto na Constituição Brasileira de 1.967:

Art 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 14 – Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.

Essa Constituição foi imposta ao Congresso pelo Poder Executivo, que já estava sob a égide de atos institucionais restritivos e desfalcado de suas principais lideranças oposicionistas. Bom lembrar que a Chefia do Executivo era exercida por militares, pois esse segmento, associado a grupos civis e, sabidamente, com a apoio dos Estados Unidos, depusera, em 1964, o então Presidente da República.

Sabe-se hoje que sob a vigência dessa Constituição, numerosas pessoas foram torturadas física e psicologicamente e que houve mortes em celas, em veículos, em salas de tortura e em outros locais.

Que  esse triste momento de nossa história não seja jamais esquecido. Que não nos iludamos com aqueles que, louvando aquele período, dizem que respeitarão a Constituição.

Tenhamos bem presente que um texto constitucional, um contrato ou qualquer outro acordo ou plano  são promessas que podem ou não transformarem-se em verdades. Então, sejamos vigilantes e precavidos.

 

Jorge Terra.

20 de agosto de 2018

TRT de São Paulo tem primeira presidenta negra, que pede unidade

“Já temos muitos inimigos”, diz Rilma Hemetério, eleita nesta quarta-feira (1º)

Presidente TRT

A presidenta eleita do TRT disse que sua vitória pertence às mulheres e a seus antepassados

 

São Paulo – Eleita nesta quarta-feira (1º), a primeira presidenta negra do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, que abrange a Grande São Paulo e a Baixada Santista), Rilma Aparecida Hemetério, pediu unidade. “Precisamos nos unir, porque inimigos já temos, e muitos”, afirmou, logo depois da eleição, que escolheu também os novos vices administrativo e judicial, além do corregedor.

O TRT-2 é o maior do país. Em 2017, recebeu 470.830 novas ações, ante 488. 646 no ano anterior, resultado influenciado pela nova lei trabalhista. A 2ª Região concentra 500 magistrados e 5.500 servidores.

Eleita em primeiro turno, com 46 de 87 votos, Rilma formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi promotora no Ministério Público de Minas Gerais e iniciou a carreira na Justiça do Trabalho em 1976, como atendente judiciária. Foi aprovada na magistratura em 1981. “É uma vitória que pertence às mulheres, aos meus antepassados”, afirmou. “Também será um legado para as gerações futuras.”

Rilma declarou ainda que não há diferença entre trabalho de homens e mulheres – existe, segundo ela, trabalho competente e reconhecido. “Tanto que hoje, a ‘menina do balcão’, como eu era chamada, vai dirigir o maior tribunal trabalhista do país”, lembrou.

Jucirema Maria Godinho Gonçalves será a vice-presidente administrativa, enquanto Rafael Edson Pugliese Ribeiro assumirá a vice judicial. Luiz Antonio Moreira Vidigal foi eleito corregedor regional. A nova direção estará à frente do TRT até 2020.

Fonte:  Rede Brasil Atual

12 de agosto de 2018

Debate sobre cotas raciais na RDC TV

Participação no Programa “Cruzando Conversas” na RDC Tv em 07.08.2018.

O tema do debate é cota racial na educação e em concursos públicos.

Debatedores Bruno Dornelles, José Antônio Rosa, Fábio Catani e Jorge Terra.

Vídeo acessível pelo seguinte link:

11 de agosto de 2018

Entrevista ao Controle em Foco

Entrevista concedida ao Programa Controle em Foco do CEAPE/Sindicato, em agosto de 2.018, sobre a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/RS.

Pelo link abaixo acesse e opine:

http://www.ceapetce.org.br/midias/audios/procurador-do-rs-jorge-terra-fala-sobre-o-trabalho-da-comiss%C3%A3o-da-verdade-sobre-a-escravid%C3%A3o-negra-do-rs

 

3 de agosto de 2018

Como foi julgada a lei que instituiu o Conselho do Povo de Terreiro do Município de Rio Grande ?

Ação direta de inconstitucionalidade. município do rio grande. lei municipal Nº 7.954/2015. conselho municipal do povo do terreiro. COMPOSIÇÃO.

  1. A atribuição de 12 vagas (art. 3º, II, b e §§ 3º e 4º da Lei Municipal nº 7.954/2015) para representantes diretos de Ylês ou casas de Matriz Africana, dentre as 16 vagas reservadas a representantes da sociedade civil organizada, não configura qualquer ofensa ao princípio da laicidade do Estado.
  2. Em se tratando de Conselho destinado à formulação e proposição de políticas públicas destinadas aos homens e mulheres identificados com as práticas culturais religiosas de matriz africana, afigura-se inteiramente razoável que seus membros sejam majoritariamente representantes das próprias comunidades de terreiro.
  3. Embora o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE, POR MAIORIA.

 

Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Órgão Especial
Nº 70076012830 (Nº CNJ: 0365398-15.2017.8.21.7000)

 

PROCURADOR-GERAL DE JUSTICA

 

PROPONENTE
PREFEITO MUNICIPAL DE RIO GRANDE

 

REQUERIDO
CAMARA MUNICIPAL DE VEREADORES DE RIO GRANDE

 

REQUERIDO
PROCURADOR-GERAL DO ESTADO

 

INTERESSADO
DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

 

AMICUS CURIAE

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, vencidos os Desembargadores Marco Aurélio Heinz (Relator), Matilde Chabar Maia, Alexandre Mussoi Moreira, Angela Terezinha de Oliveira Brito, Pedro Luiz Pozza, Carlos Eduardo Zietlow Duro (Presidente), Ivan Leomar Bruxel, Maria Isabel De Azevedo Souza e Irineu Mariani.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além dos signatários, os eminentes Senhores Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro (Presidente), Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa, Des. Marcelo Bandeira Pereira, Des. Jorge Luís Dall’Agnol, Des. Ivan Leomar Bruxel, Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, Des.ª Maria Isabel de Azevedo Souza, Des. Luiz Felipe Brasil Santos, Des. Irineu Mariani, Des. Manuel José Martinez Lucas, Des. Marco Aurélio Heinz, Des.ª Matilde Chabar Maia, Des. Alexandre Mussoi Moreira, Des. Luís Augusto Coelho Braga, Des. André Luiz Planella Villarinho, Des.ª Angela Terezinha de Oliveira Brito, Des.ª Marilene Bonzanini, Des. Glênio José Wasserstein Hekman, Des. Tasso Caubi Soares Delabary, Des. Túlio de Oliveira Martins, Des. Ney Wiedemann Neto, Des. Ricardo Torres Hermann, Des. Martin Schulze e Des. Pedro Luiz Pozza.

Porto Alegre, 21 de maio de 2018.

 

 

DES. MARCO AURÉLIO HEINZ,

Relator, voto vencido.

 

 

DES. EDUARDO UHLEIN,

Redator para o acórdão.

 

RELATÓRIO

Des. Marco Aurélio Heinz (RELATOR)

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA move ação direta de inconstitucionalidade, com a finalidade de retirar do ordenamento jurídica, o art. 3º, inciso II, letra ‘b’ e parágrafos 3º e 4º, e do art. 13, parágrafo único, da Lei n. 7.954/2.015, do Município do Rio Grande,  que dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal do Povo do Terreiro.

O fundamento da ação é que, a lei impugnada, na parte em que estabelece a composição do Conselho Municipal do Povo do Terreiro, sendo composto por uma determinada crença religiosa específica (12 vagas para representantes diretos de YLÊS, instituídos, considerados ainda por casas de Matriz Africana, Terreiro de Umbanda, Tendas e demais conceituações reconhecidas), extrapola a mera proteção da identidade da comunidade em relevo, para ferir a laicidade do Estado, violando o disposto nos artigos 5º, caput, e 19, incisos I e III, ambos da Constituição Federal, de reprodução obrigatória pelos Estados Federados. Esclarece ainda que os artigos em testilha conferem tratamento não isonômico aos cidadãos, privilegiando expressamente comunidade religiosa ligada ao povo do terreiro em detrimento dos demais cultos, agremiações e organizações de cunho religioso da comunidade de Rio Grande, subvencionando com verbas públicas os integrantes daquela entidade religiosa.

O Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul postula a improcedência do pedido, discorrendo sobre denúncias de intolerância religiosa no Brasil, destacando que o conselho criado pela lei municipal não detém caráter religioso mas voltado a direitos, argumentando que a religiões de matriz africana no Brasil não recebem o mesmo tratamento de outras denominações religiosas, sendo alvo de constantes ataques, propondo a realização de audiências públicas.

O Prefeito Municipal de Rio Grande também bate-se pela constitucionalidade do Conselho instituído pela lei questionada, que não vulnera o princípio da isonomia, nem afronta o princípio da laicidade do Estado.

A Câmara de Vereadores de Rio Grande nega vício de inconstitucionalidade na formação do Conselho Municipal do Povo de Terreiro, invocando para tanto, a faculdade instituída pela Constituição Federal de auto governo, expresso nos artigos 30, I e II. Refere que as políticas públicas é ato discricionário e do plano de governo de cada gestor público, não havendo violação da laicidade do Estado.

O Ministério Público manifesta-se no sentido da procedência do pedido uma vez que a criação do Conselho Municipal, com integrantes especificamente escolhidos entre professos de determinada religião (dos Povos de Terreiro ou dos Povos de Matriz Africana) fere o princípio da laicidade do Estado previsto no art. 19, I e II, da Constituição Federal e da igualdade, trazendo à colação jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e precedente deste Tribunal.

São indeferidos os pedidos para integrarem a relação processual na condição de ‘amicus curiae’ de José Rivair Macedo, do Conselho do Povo do Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, da Comunidade Tradicional de Matriz Africana e Afrobrasileira ‘Ìlé Àiyé Orishá Yemanjá’ e Secretaria de Desenvolvimento Social, Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul.

Indeferida, também, a realização de audiência pública para oitiva de profissionais indicados no petitório formulado pelo Procurador-Geral do Estado já que se trata de processo objetivo de controle abstrato da constitucionalidade, matéria exclusivamente de direito.

É o relatório.

VOTOS

Des. Marco Aurélio Heinz (RELATOR)

É admissível a propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local já que a alegada ofensa diz com dispositivos constitucionais de reprodução obrigatória pelos Estados-membros; matéria especificamente tratada no Tema 484, RE n. 650.898/RS, com a seguinte redação:

 

“Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de lei municipais, utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos Estados”.

 

A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz constitucional pois reside no texto da Constituição e nele somente. Os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles  que concernem ao exercício do poder de iniciativa vinculada das leis, somente se legitima se houver no texto da própria constituição dispositivo que, de modo expresso a preveja.

No caso, discute-se a constitucionalidade do Conselho Municipal do Povo de Terreiro da Cidade do Rio Grande, vinculado técnica e administrativamente, à Secretaria da Cultura, devendo a mesma aportar os devidos recursos para o funcionamento pleno, que prevê 12 vagas para representantes diretos de Ylês, instituídos, considerados, ainda por casas de Matriz Africana, Terreiro de Umbanda, Tendas e demais conceituações.

O autor sustenta violação do art. 5º (isonomia) e 19, I e III da Constituição Federal (vedação aos Municípios de subvencionar cultos religiosos ou igrejas, mantendo com seus representantes, relações de dependência ou aliança).

O atentado à isonomia consiste em se tratar desigualmente situações iguais, ou em se tratar igualmente situações diferenciadas, de forma arbitrária, e não fundamentada. É na busca da isonomia que se faz necessário tratamento diferenciado, em decorrência de situações que exigem tratamento distinto, como forma de realização da igualdade (RE n. 453.740, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24-8-2007).

No mesmo sentido:

 

“O atentado à isonomia consiste em se tratar desigualmente situações iguais ou em se tratar igualmente situações diferenciadas, de forma arbitrária e não fundamentada” (AI-AgR n. 349.477/PR, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28-2-2003).

 

A propósito, o melhor critério de discriminação é o sugerido por Bandeira de Mello para quem:

 

“tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para à vista do traço desigualizador adotado atribuir o específico tratamento jurídicio construído em função da desigualdade afirmada.” (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, RT, 1978, pág. 48).

 

E prossegue o mesmo autor:

 

“a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”. (op. cit., pág. 49).

 

Sobre o tema leciona com propriedade Alexandre de Moraes:

 

“O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos, de uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciação em razão de sexo, religião, convicção filosóficas ou políticas, raça, classe social” (Direito Constitucional, 24ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2009, pag. 37).

 

Por fim, “os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado” (Fábio Konder Comparato, Direito Público, estudos e pareceres, São Paulo, Saraiva, 1996, pag. 59).

No caso dos autos, a lei impugnada descreve no seu artigo 10, as atribuições do Conselho Municipal do Povo de Terreiro do Rio Grande, como sendo: I. Definir diretrizes e metas para a formulação das políticas públicas direcionadas a atender as demandas locais do Povo de Terreiro da Cidade de Rio Grande, e, principalmente as deliberações das conferências. II. Instituir programa estratégico de implantação de políticas públicas para o Povo de Terreiro. II. Acompanhar e fiscalizar a execução das políticas públicas voltadas ao Povo de Terreiro. IV. Ser consultado na elaboração da proposta orçamentária do governo municipal, no que diz respeito aos recursos públicos destinados à políticas públicas para o Povo de Terreiro entre outras.

Verifica-se, assim, que o órgão público tem como finalidade específica definir políticas públicas e metas direcionadas exclusivamente ao Povo de Terreiro, que recebe verbas públicas para implantação de projetos que visam atender unicamente as necessidades do Povo de Terreiro em detrimento de qualquer outra comunidade da Cidade do Rio Grande.

É evidente o tratamento diferenciado a uma determinada parcela da comunidade do Município, que segundo a lei em testilha:

 

“é o conjunto de Comunidades Tradicionais ou grupos culturalmente diferenciados, com formas próprias de organização social que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, social, ancestral e econômica que se reconhecem como tal, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição e oralidade” (art. 1º, parágrafo único da Lei 7.954/2015).

 

O critério diferenciador da comunidade que terá tratamento privilegiado com verbas públicas é vago e indeterminado, não estabelecendo o ato normativo impugnado, a motivação suficiente para tal tratamento.

O discrimine adotado em favor do Povo de Terreiro não ostenta justificativa racional para atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada. Ou seja, não há uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado. Não aponta a lei questionada superação de desigualdade decorrentes de situações históricas de exclusão social que seja reparada por ação afirmativa.

Ainda:

 

“…as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se em benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social,  mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos” (ADPF 186, que tratou de atos que instituíram o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (cotas) no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 26.04.2012, DJe de  20.10.2014).

 

No caso, a lei impugnada não se fundamentou em quadro de exclusão social do Povo de Terreiro que justificasse o tratamento não isonômico, em flagrante violação ao princípio da igualdade esculpido no art. 5º da Constituição Federal.

Por outro lado, não se percebe vulnerado o princípio da laicidade ou da neutralidade quanto às religiões porque, como visto, o critério de desigualdade estabelecido em favor do Povo de Terreiro não é em razão de culto religioso ou igreja, mas leva em consideração  grupos culturalmente diferenciados, com formas próprias de organização social e ocupação de território.

Sendo assim, julgo procedente a ação, retirando do ordenamento jurídico o art. 3º, inciso II, letra ‘b’ e parágrafos 3º e 4º, e do art. 13, parágrafo único, da Lei n. 7.954/2.015, do Município do Rio Grande,  que dispõe sobre a criação, composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal do Povo do Terreiro.

 

Des. Eduardo Uhlein (REDATOR)

Peço vênia para encaminhar voto divergente.

Inicialmente, destaco o trabalho feito na tribuna pelo Dr. Terra, Procurador do Estado, e quero destacar também o valioso trabalho feito pela Defensoria Pública, que atua como amicus curiae, há um memorial encartado no processo eletrônico, de lavra do Dr. Mário Rheingantz, Defensor Público, que trouxe valiosos subsídios para a formação de meu convencimento.

Não identifico inconstitucionalidade nos dispositivos isolados que são objeto da presente ação direta.

Segundo o próprio autor da ação, a instituição de um Conselho Municipal do Povo de Terreiro é medida legítima e que não fere a Constituição.

Transcrevo passagem da iniciai, verbis;

“impende consignar que não se pretende aqui desconsiderar o denominado “Povo de Terreiro” – enquanto conjunto das populações de ascendência africana – “tendo-se por legítima a instituição do Conselho Municipal do Povo de Terreiro, em prol da discussão, análise, elaboração e aprovação de políticas públicas tendentes a garantir a participação da comunidade do povo de terreiro no processo cultural, social, ancestral e econômico do Município de Rio Grande.

 

Ou seja, não está em jogo, nesta ação constitucional, a legitimidade da instituição do Conselho Municipal dirigido ao desenvolvimento de ações, estudos e propostas de políticas públicas voltadas especificamente para o conjunto de homens e mulheres identificados com os costumes e práticas das comunidades tradicionais de matriz africana.

Essa mesma iniciativa já foi tomada pelo próprio Estado do Rio Grande do Sul, que instituiu Conselho do Povo de Terreiro do Estado (através de Decreto Estadual nº 51.587/2014), assim como por diversos outros Municípios (São Leopoldo, pela Lei Municipal nº 8.693/2017; Capão do Leão, pela Lei Municipal nº 1.681/2014, entre outros).

Esses órgãos de participação cidadã estão inseridos na política pública de promoção da igualdade racial, instituída nacionalmente pela Lei Federal nº 12.288/2010, o Estatuto da Igualdade Racial,  e que, ao criar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), estabeleceu o seguinte, verbis

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal.

  • 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar do Sinapir mediante adesão.
  • 2º O poder público federal incentivará a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.

CAPÍTULO II

DOS OBJETIVOS

Art. 48. São objetivos do Sinapir:

I – promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive mediante adoção de ações afirmativas;

II – formular políticas destinadas a combater os fatores de marginalização e a promover a integração social da população negra;

III – descentralizar a implementação de ações afirmativas pelos governos estaduais, distrital e municipais;

IV – articular planos, ações e mecanismos voltados à promoção da igualdade étnica;

V – garantir a eficácia dos meios e dos instrumentos criados para a implementação das ações afirmativas e o cumprimento das metas a serem estabelecidas.

CAPÍTULO III

DA ORGANIZAÇÃO E COMPETÊNCIA

Art. 49. O Poder Executivo federal elaborará plano nacional de promoção da igualdade racial contendo as metas, princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR).

  • 1º A elaboração, implementação, coordenação, avaliação e acompanhamento da PNPIR, bem como a organização, articulação e coordenação do Sinapir, serão efetivados pelo órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica em âmbito nacional.
  • 2º É o Poder Executivo federal autorizado a instituir fórum intergovernamental de promoção da igualdade étnica, a ser coordenado pelo órgão responsável pelas políticas de promoção da igualdade étnica, com o objetivo de implementar estratégias que visem à incorporação da política nacional de promoção da igualdade étnica nas ações governamentais de Estados e Municípios.
  • 3º As diretrizes das políticas nacional e regional de promoção da igualdade étnica serão elaboradas por órgão colegiado que assegure a participação da sociedade civil.

Art. 50. Os Poderes Executivos estaduais, distrital e municipais, no âmbito das respectivas esferas de competência, poderão instituir conselhos de promoção da igualdade étnica, de caráter permanente e consultivo, compostos por igual número de representantes de órgãos e entidades públicas e de organizações da sociedade civil representativas da população negra.

Parágrafo único. O Poder Executivo priorizará o repasse dos recursos referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios que tenham criado conselhos de promoção da igualdade étnica.

O art. 50 do Estatuto da Igualdade Racial, acima reproduzido, expressamente alude à instituição, pelos Estados e Municípios, de conselhos de promoção da igualdade étnica, de caráter permanente e consultivo, a serem compostos por representantes das entidades públicas e organizações da sociedade civil representativas da população negra, o que confere, no âmbito infraconstitucional, a devida legitimidade para a criação dos Conselhos Estadual e Municipais do Povo de Terreiro.

Esta ação direta, contudo, não se volta à instituição do Conselho, mas unicamente contra a sua composição.

Os dispositivos questionados na demanda são unicamente o art. 3º, II, b e §§ 3º e 4º  e o art. 13, par. único, da Lei Municipal 7.954/2015:

Art. 3º O Conselho será composto de 23 (vinte e três) conselheiros(as) titulares e seus respectivos suplentes, sendo estes, representantes governamentais e da sociedade civil organizada, que ocuparão vagas mediante as seguintes proporções:

 

I – 30% de representantes de órgãos governamentais; ocupando 07 vagas;

 

II – 70% de representantes da sociedade civil organizada, na seguinte proporção:

 

  1. a) 04 vagas para representantes de organizações e instituições representativas de direitos coletivos do Povo de Terreiro e de trabalho reconhecido;
  2. b) 12 vagas para representantes diretos de Ylês instituídos, considerados ainda por casas de Matriz Africana, Terreiro de Umbanda, Tendas e demais conceituações reconhecidas;

 

  • 1º Os representantes de órgãos governamentais serão nomeados pelo Executivo Municipal.

 

  • 2º Os representantes das organizações e instituições representativas de direitos coletivos do Povo de Terreiro, serão eleitos para mandato de 2 (dois) anos, cuja eleição ocorrerá nas Conferencias Municipais de Povo de Terreiro, podendo haver uma reeleição;

 

  • 3º Os representantes diretos de Ylês instituídos, considerados ainda por casas de Matriz Africana, Terreiros de Umbanda, Tendas e demais conceituações reconhecidas, serão eleitos para mandato de 2 (dois) anos, cuja eleição ocorrerá nas Conferencias Municipais de Povo de Terreiro, podendo haver uma reeleição;
  • 4º As representações eleitas nas Conferências Municipais, sendo das Instituições e organizações bem como os vindos diretos de Ylês, centros ou ainda de casas de Matriz Africana, Terreiros de Umbanda, Tendas e demais conceituações reconhecidas, quando não forem membros da direção executiva de suas instituições e ou Babalorixas, Yalorixás e Caciques de seus Ylês e centros de umbanda, deverão, enquanto representantes destes, apresentar documentação autorizando sua representatividade;

 

(…)

 

Art. 13 Os representantes da sociedade civil da primeira composição do Conselho Municipal do Povo de Terreiro serão indicados em plenária específica convocada para este fim.

 

Parágrafo único. O Ylê que atualmente representa o município no Conselho Estadual do Povo de Terreiro, juntamente com seu suplente, é membro nato da primeira composição do Conselho Municipal do Povo de Terreiro referido no caput.

 

 

Justifica assim o Procurador-Geral de Justiça a afirmada inconstitucionalidade de tais dispositivos, verbis,

 

“(…) a lei em testilha, na parte em que estabelece que o Conselho Municipal do Povo de Terreiro será composto por uma crença religiosa específica, mediante o aporte de recursos financeiros públicos, acrescentando que a entidade está vinculada, técnica e administrativamente, à Secretaria Municipal de

Cultura, extrapola a mera proteção da identidade da comunidade em relevo, ferindo a laicidade do Estado, comando constitucionalmente posto, notadamente nos artigos 5º, caput, e 19, incisos I e III, ambos da Constituição Federal(…)

 

 

Data venia, vejo diversamente.

Na simples definição e atribuição de 12 vagas, dentre as 16 vagas reservadas a representantes da sociedade civil organizada, para representantes diretos de Ylês ou casas de Matriz Africana, não extraio qualquer ofensa ao princípio da laicidade do Estado.

Em se tratando de Conselho destinado à formulação de políticas públicas destinadas aos homens e mulheres identificados com as práticas culturais religiosas de matriz africana, afigura-se inteiramente razoável que seus membros sejam, em maioria,  representantes das próprias comunidades de terreiro. No caso do Conselho Estadual (Decreto nº 51.587/2014), das 64 cadeiras, 40% foram atribuídas a representantes diretos das “comunidades tradicionais de Matriz Africana e Afro-Umbandista”, e as restantes divididas entre representantes de órgãos governamentais (30%) e representantes de organizações e de instituição representativas de direitos coletivos do Povo do Terreiro, sem que se cogite de quaisquer representantes de outras religiões ou grupos étnico-culturais, exatamente como na lei em discussão nesta ação.

Ademais, em nenhum dos dispositivos inquinados, antes reproduzidos, há previsão de qualquer repasse ou subvenção de recursos públicos para o Conselho do Povo de Terreiro.

A única menção a recursos, na impugnada Lei, está no artigo 2º – que não é objeto do pedido – e que simplesmente menciona que o Conselho fica vinculado, técnica e administrativamente, à Secretaria da Cultura, “devendo a mesma aportar os devidos recursos para o seu funcionamento pleno” – o que, portanto, limita-se a prever o óbvio: que o financiamento das atividades do próprio Conselho Municipal sairá do orçamento da Secretaria de Cultura, o que não tem, em absoluto, o significado de possibilitar a interpretação de que o Poder Público Municipal estaria a destinar recursos para as comunidades culturais e religiosas que compõem o chamado Povo de Terreiro.

Ora, todos os Conselhos instituídos pelo Poder Público são mantidos financeiramente pelo erário, o que longe fica da idéia de financiamento público de seus integrantes ou das instituições nele representadas.

Assim, não vejo, nos dispositivos questionados na ação, qualquer hipótese que caracterize estabelecimento de preferência ou, menos ainda, subvenção ou patrocínio de parte do Poder Público Municipal do Rio Grande para com as comunidades afro-religiosas que compõem o Povo de Terreiro.

Embora o Estado seja laico, é responsável pela garantia da igualdade de direitos entre todos os cidadãos, o que certamente inclui a garantia da liberdade de expressão e de culto religioso.

Assim é que no Relatório da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir-2005), destacou-se “a necessidade de ações que proporcionem a estruturação, politização e maior organização e afirmação, tais como a ampliação da sustentabilidade das comunidades, o seu reconhecimento como um centro irradiador de promoção de políticas públicas, a sua participação nos projetos sociais, a criação de uma rede de apoio, a promoção de intercâmbios entre as comunidades de terreiro e o incentivo às oficinas, seminários, cursos de formação nos terreiros”, no que encontro justificativa para a edição da lei municipal ora questionada.

De outra banda, o precedente invocado na inicial desta ADIn, relativo ao Município de Marau (nº 70073223984) não se revela eficiente paradigma para o que aqui se está a discutir, renovada vênia.

Ali, a Lei Municipal nº 5.216 do Município de Marau instituíra Conselho de Pastores Evangélicos destinado a auxiliar a administração municipal, inclusive definindo políticas públicas;  ali, toda a lei fora objeto da ação, e toda ela restou invalidada com a procedência da ação.  Aqui, entretanto, o próprio Ministério Público autor reconhece a legitimidade da iniciativa de instituição de um Conselho voltado às ações e políticas públicas especificas das comunidades do povo de terreiro, e os dispositivos impugnados, restritos à composição do Conselho, não se mostram, a meu sentir, conflitantes com as disposições constitucionais que estabelecem a laicidade do Estado.

Isto posto, voto pela improcedência da ação.

 

DES.ª MATILDE CHABAR MAIA – Estou acompanhando o Relator, Senhor Presidente.

 

DES. ALEXANDRE MUSSOI MOREIRA – Com o Relator.

 

DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA – Com a divergência.

 

DES. ANDRÉ LUIZ PLANELLA VILLARINHO – Pedindo vênia ao eminente Relator, eu acompanho a divergência inaugurada pelo eminente Des. Eduardo Uhlein.

 

DES.ª ÂNGELA TEREZINHA DE OLIVEIRA BRITO – Com o Relator.

 

DES.ª MARILENE BONZANINI – Com a vênia do em. Relator, acompanho a divergência inaugurada pelo Des. Eduardo Uhlein.

 

DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN – Também estou acompanhando a divergência, com a vênia do eminente Relator.

 

DES. TASSO CAUBI SOARES DELABARY – Senhor Presidente, eminentes colegas, eu estava inclinado,  inicialmente, a acompanhar o eminente Relator, mas agora, detendo-me às manifestações que ocorreram tanto da tribuna quanto do próprio Relator e do voto divergente, destacando aqui que o art. 2º, onde parece estar mais clara a questão constitucional, que era relativamente a repasse de recursos, e essa não está incluída nas disposições impugnadas, eu entendo que o voto divergente deve prevalecer. Estou acompanhando divergência.

 

DES. TÚLIO DE OLIVEIRA MARTINS – Senhor Presidente, com a vênia também do eminente Desembargador Relator, mas acompanho o consistente e irretocável voto do Des. Eduardo Uhlein.

 

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Acompanho a divergência, com a devida vênia ao culto relator. A questão posta a decidir nesta ação tem escopo muito específico sobre o critério de composição do conselho municipal, tão-somente. Nada mais que isso é aqui objeto de análise e reflexão. E, por isso, não me parece que o critério fixado pelo legislador para permitir que parte do conselho seja composto por membros oriundos de determinado segmento possa ser discriminatório, uma vez que esses membros, presumivelmente, detém o conhecimento e a experiência específica que será relevante para a criação das políticas públicas às quais este órgão se propõe.

 

 

DES. RICARDO TORRES HERMANN – Rogando vênia ao e. Relator, acompanho a divergência inaugurada pelo e. Desembargador Eduardo Uhlein.

Em consequência, julgo improcedente a ação direta de inconstitucionalidade.

É como voto.

 

DES. MARTIN SCHULZE – Com a devida vênia do ilustre Relator, acompanho a divergência lançada pelo Desembargador Eduardo Uhlein.

 

DES. PEDRO LUIZ POZZA – Com o Relator.

 

DES. CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO (PRESIDENTE) – Eu também acompanho o Relator.

 

DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA – Senhor Presidente, a presente ação direta tem objeto limitado, como bem destacou o Des. Uhlein, e essencialmente o que ela ataca diz com a composição do Conselho. Nós sabemos que a causa de pedir é livre no processo objetivo, mas, quanto ao pedido, ainda não se tem admitido essa liberdade. Então há que se considerar estritamente, em termos de pedido, aquilo que é objeto da ação direta e diz com a composição do Conselho, que seria o item 2, alínea b, do art. 3º – as 12 vagas para representantes diretos de ilês –, os §§ 3º e 4º, e o parágrafo único do art. 13. Todos a ver com a composição do Conselho. Então, com relação a dispositivos que se poderia discutir a constitucionalidade, não são objeto da ação direta. Relativamente à composição do Conselho, não vejo nenhuma ofensa quer seja ao princípio da isonomia, quer seja à definição da laicidade do Estado brasileiro, até considerando a razão de ser desse Conselho. No Decreto Estadual nº 51.587/14, exatamente se destinou vagas em predomínio expressivo quanto àqueles que fossem vivenciadores de matrizes africanas e afro-umbandistas, ou seja, é o lógico, é o natural que haja esse tipo de definição na composição de um conselho destinado a cuidar dos interesses do povo de terreiro.

Tal está bem explicitado no voto do Des. Uhlein: o pedido é limitado a essas disposições da Lei Municipal que tratam da composição do Conselho, e quanto a isso eu não vejo alguma inconstitucionalidade.

Estou acompanhando a divergência, Senhor Presidente.

 

DES. MARCELO BANDEIRA PEREIRA – Senhor Presidente, eminentes Colegas, eminente Procurador de Justiça, senhores advogados, demais presentes e, de modo especial, Des.ª Vera Deboni, Presidente da Ajuris.

Eu também, Senhor Presidente, meditando sobre tudo o que foi dito em sessão, sustentação oral muito bem produzida, os votos díspares e o bem lançado parecer do Ministério Público, que foi o autor da ação, parece-me que, com a vênia dos entendimentos em contrário, que tem razão o Des. Uhlein. Os fundamentos do seu voto me convenceram, e mais ainda quando a eles se agregue as ponderações desfiadas pelo  Des. Armínio.

Acompanho a dissidência.

 

DES. JORGE LUÍS DALL’AGNOL – Com a vênia do eminente Relator, estou acompanhando a divergência.

 

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Acompanho o Relator, Senhor Presidente.

 

DES. NELSON ANTONIO MONTEIRO PACHECO – Inicialmente eu tinha a posição de acompanhar o Relator, mas ouvindo agora o debate que se travou, especialmente a observação do Des. Arminio reforçando o que já tinha dito o Des. Uhlein, da limitação dos pedidos postos na inicial, que dizem especificamente sobre a composição do Conselho, e vendo a legislação Estadual que foi editada regulamentando já a Lei Estadual, que permitiu a existência de conselhos semelhantes, eu também não vejo a inconstitucionalidade proclamada pelo Relator, então estou acompanhando a divergência.

 

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Acompanho a divergência.

 

DES.ª MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA – Senhor Presidente, eu vou acompanhar o eminente Relator, apenas aduziria que posso estender aos demais dispositivos, por arrastamento, a inconstitucionalidade apontada pelo eminente Relator.

 

DES. IRINEU MARIANI – Com o Relator.

 

DES. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS – Com a vênia do eminente Relator, acompanho a divergência, pelos jurídicos fundamentos do douto voto do Des. Eduardo Uhlein.

 

DES. CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO – Presidente – Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70076012830: “POR MAIORIA, JULGARAM IMPROCEDENTE A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, VENCIDOS OS DESEMBARGADORES MARCO AURÉLIO HEINZ (RELATOR), MATILDE CHABAR MAIA, ALEXANDRE MUSSOI MOREIRA, ANGELA TEREZINHA DE OLIVEIRA BRITO, PEDRO LUIZ POZZA, CARLOS EDUARDO ZIETLOW DURO (PRESIDENTE), IVAN LEOMAR BRUXEL, MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA E IRINEU MARIANI.”

1 de agosto de 2018

Após 130 anos, reflexos da escravidão e de uma abolição mal projetada ainda são sentidos no Brasil

 

Após 130 anos, reflexos da escravidão e de uma abolição mal projetada ainda são sentidos no Brasil

Em 13 de maio de 1888 Lei Áurea foi assinada

thumb.jpg

Tânia Terezinha da Silva é a única mulher negra no comando de uma prefeitura no Rio Grande do Sul | Foto: Guilherme Almeida

Mesmo tendo nascido em outra cidade de forte presença alemã, Tânia garante ter passado ao largo do racismo. Ela recorda apenas que na infância teve sua entrada vetada em um clube de sua cidade natal, mas que nem de longe imaginou que fosse por causa da cor de sua pele. “Depois fiquei sabendo que o clube era exclusivo para brancos. Mas eu não sabia o que era racismo. E as minhas colegas brancas ainda haviam aberto um buraco para que eu entrasse lá. Era ingenuidade, sim, era ingenuidade. Mas tirando a minha família, não convivi com negros, só com brancos. E tirando aquele fato, nunca senti barreiras”, garante Tânia.

A mais nova de seis irmãos, ela estudou em escolas particulares como bolsista e diverte-se ao lembrar do pai, Pedro Lindomar da Silva, falecido quando Tânia estava com 16 anos. “Ele era motorista particular de uma família importante da cidade e todo o final de semana vinha para casa com o carrão e eu aproveitava para me passar por rica”, diz, soltando uma gargalhada. A mãe, dona Roza Antônia da Silva, zeladora e empregada doméstica aposentada, está hoje com 89 anos e é sua grande amiga.

Tânia é a única prefeita negra no Rio Grande do Sul. Aliás, a presença feminina e negra na política é algo quase inexistente. No quadro ao lado, algumas personalidade de vida política brasileira.

Na Câmara de Porto Alegre, de 36 vereadores, apenas um é negro, o ex-jogador do Grêmio José Tarciso de Souza, além de um suplente, o Delegado Cleiton Freitas. Tarciso nasceu na cidade mineira de São Geraldo, há 66 anos, e desde cedo conviveu com o racismo. “Minha cidade era de muito preconceito. Me chamavam de negro do cabelo duro, de macaco e de negro sujo quando era pequeno, no colégio. Era comum isso. Naquele tempo não havia como denunciar, como recorrer a alguma medida. Chegava em casa chorando e dizia para minha mãe que não queria mais voltar à escola, nunca mais”, recorda.

Já adolescente, no Rio de Janeiro, passou por uma situação comum aos jovens negros: acusação de roubo em alguma loja. “Eu era office-boy, tinha entre 14 e 15 anos.Fui entregar coisas no Centro e aconteceu um roubo e alguém na rua me acusou.Casualmente tinha uma sacola com as coisas que tinha que entregar. Reviraram a sacola e constataram que nada havia nela relacionado à acusação. Ficou por isso, mas até hoje não esqueço.

Esses episódios marcam, mas, quando ocorrem quando se é criança, a absorção é rápida, fica na memória”, acredita. Tarciso não consegue entender de onde aparece tanto preconceito, inclusive no futebol. “Chamar de macaco é reação de várias torcidas e muitos jogadores sofreram e sofrem isso. No futebol, até hoje isso acontece. Não sei explicar o motivo desse ódio, essa raiva e esse preconceito.”
Como político atuante, o ex-jogador acompanha os casos de racismo sempre de perto e confessa que isso o incomoda. “Quando vejo preconceito com pessoas com alguma diferença da maioria me sinto muito triste. Ver ser humano contra ser humano. Meu filme das histórias ruins volta e passa a rodar na minha cabeça. Na verdade acho que sinto mesmo é pena dessas pessoas”, analisa.

Acabar com esta diferença é um trabalho árduo. “Acredito que o racismo só passará se começarmos a trabalhar lá na semente. Não apenas o racismo é preocupante, todo o tipo de preconceito é perigoso. Temos que atuar na solução disso junto às crianças, nas escolas, professores e famílias.”

Faltam ainda, para Tarciso, mais exemplos de heróis negros, para deixar as pessoas mais orgulhosas. “Faltaram heróis mais presentes. Temos Zumbi dos Palmares, é importante, mas não é presente, está em um passado muito distante, que só se conhece pelos livros, lendo a história. Zumbi foi grande herói. Seria necessário ter referência de quem está no nosso cotidiano, agindo, participando. Havia o Pelé, alguns atores negros, mas eram poucos. O que falta mesmo, no meu pensamento, é conhecer o que foi a nossa raça. Viemos de onde, qual país, qual estado, cidade? Não sabemos. Por isso, a educação é necessária.”

O vereador é um crítico do 13 de maio. “Deveríamos estar comemorando, com muita alegria, mas temos a realidade. Os homens negros ganham menos, as mulheres negras ganham menos, mas trabalhamos mais. Os filhos dos negros lutam para conseguir estudar. A igualdade passa longe dos negros ainda. O 13 de maio me traz o filme de volta na cabeça”, completa.

PAULO NUNES/ CP MEMÓRIA

José Tarciso de Souza é o único vereador negro na Câmara de Porto Alegre

Justiça

Os negros estão representados na Justiça Gaúcha, mas em número muito pequeno. De 292 magistrados, apenas cinco juízes se declaram negros ou pardos, ou seja, menos de 2%. Um deles é Karen Luise Vilanova Batista de Souza Pinheiro, 48 anos, formada em Direito na PUCRS em 1994 e aprovada em concurso em 1998. Ela passou dez anos e meio como Juíza de Direito na Comarca de Soledade, titular da Vara Criminal, e acaba de ser promovida para Porto Alegre, onde será juíza substituta de entrância final.

De acordo com a juíza, deve ser realizada uma mudança na estrutura da sociedade brasileira, em que ocorra a inclusão dos negros. Ela entende que as coisas começaram a dar errado logo na abolição, que já criou uma primeira barreira, pois deixou os ex-escravos sem condições de sobrevivência. “A sociedade se estruturou para manter o negro marginalizado. Restava a ele ocupar espaços que sobravam. Criaram-se leis para marginalizá-lo mais ainda: proibiram a capoeira, criminalizaram a embriaguez, a mendicância, a vadiagem. E quem estava sujeito a isso? Os negros, que não recebiam oportunidades e eram afastados dos privilégios dados a outros. Começa também o processo de encarceramento da população negra”, explica.

Karen é taxativa. Para ela, a sociedade brasileira é racista e ainda enxerga o negro como incapaz, preguiçoso e dono de inteligência limitada. A juíza prossegue, afirmando que os negros devem ocupar espaço, superar barreiras. “A partir daí, vamos passar a entender a nossa importância e nosso valor social. Temos também de entender que vivemos, sim, em um país racista e cobrar políticas públicas”.

Ela relata um caso: um homem negro de terno entra em uma sala de audiência. As pessoas imediatamente acham que ele é o segurança do juiz que vai chegar. “Mas veja bem, ele é o juiz! Ninguém tem representado em seu imaginário a figura de um cidadão negro como a de um magistrado. A cor dele nega uma imagem de um representante de um poder, no caso o judiciário.”

Além do novo cargo na Justiça, Karen atua no Departamento de Direitos Humanos Ajuris. Ela conseguiu aprovar na entidade projeto para conceder bolsas de estudos para pessoas vulneráveis socialmente, com ênfase nos estudantes negros. “Assim, de alguma forma, vamos conseguir reverter a situação”, explica. Ela diz que os cursos jurídicos são caros e exigem dedicação exclusiva, algo impensável para a maioria afrodescendente. Outra atividade de Karen é participar de uma organização não governamental, o Instituto de Acesso à Justiça, que financia a preparação de pessoas negras para o ingresso nas carreiras jurídicas.

Sua vida foi repleta de batalhas contra o racismo, que até tentou atrapalhar o seu avô, Hélio Vilanova, já falecido. Por volta da década de 1930, ele prestou um concurso para um banco e foi aprovado. “Só que a instituição não queria aceitar um negro em suas fileiras e vetaram sua contratação aqui no Rio Grande do Sul por causa de exames admissionais de saúde. Conforme a direção do banco, meu avô teria de ir ao Rio de Janeiro refazê-los. Ele juntou economias, foi e passou. Aí não tiveram como barrá-lo. Morreu de velho, aos 95 anos”, recorda. “Este emprego transformou a minha família. E a minha história é de exceção”, afirma ela, filha de dois funcionários públicos.

A própria juíza não ficou imune ao preconceito. Nascida em Porto Alegre, viveu no bairro Partenon e teve o privilégio de estudar em escola particular. Sendo a única negra nas turmas, era chamada de macaca pelos colegas brancos. Ao chegar em casa, falou para a mãe que não iria mais voltar à escola e ouviu um não como resposta. “Vi o racismo em todos os lugares. Na escola particular, onde estagiei e trabalhei como professora, nas escolas públicas. Na universidade éramos apenas dois negros, eu e mais um colega”, recorda. “Ainda na infância ouvi meus pais relatarem da vida apartada dos brancos. Como lhes era proibida a entrada em diversos clubes por causa da cor da pele, frequentaram e frequentamos outros espaços, como a Sociedade Floresta Aurora e a Associação Satélite Prontidão, criada e dirigida por negros”.

Da juventude, época em que prestava o concurso para a magistratura, relata um incidente passado em uma livraria. Entrou com sua mochila cheia de livros e, ao sair, foi abordada por um funcionário, que queria saber se aquele material era dela ou se ela estava furtando da loja.

O fato de hoje ocupar um cargo privilegiado não faz com que Karen ainda não sofra com o racismo: “A ascensão social não muda a cor da nossa pele”. Ela conta que, há poucos meses, estava em uma loja de departamentos com as duas filhas e viu quando uma funcionária disse a outra para ficar de olho nelas. “Passamos a ser seguidas e vigiadas dentro da loja como se fôssemos criminosas”, reclama.

GUILHERME TESTA

De 292 juízes do Estado, cinco se declaram negros ou pardos, entre eles Karen Luise Vilanova Batista de Souza Pinheiro

Segurança

O superintendente da Polícia Rodoviária Federal João Francisco Ribeiro de Oliveira é taxativo sobre a questão do racismo. “Sempre tive uma autoestima muito forte, por conta da força da educação familiar recebida e, portanto, nunca sofri com o racismo, mesmo quando fui discriminado. Ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Se não gostam da cor da minha pele, só posso dizer lamento”, afirmou o policial, no cargo de chefia da PRF desde abril do ano passado.

Aos 41 anos e natural de Porto Alegre, com formação acadêmica em Direito, João Francisco diz que a educação recebida dos pais o fez forte. “Um dos momentos mais constrangedores foi à época do colégio, no bairro Camaquã, onde nas aulas de biologia, alguns colegas me chamavam de macaco, de mico, etc. Mas entendia mais como um deboche, infeliz brincadeira de criança”, acrescenta João.

Ele diz que sua geração é contemporânea de alterações importantes na sociedade. Em sua visão, os negros atualmente podem estudar, se qualificar, almejar ascensão social e ocupar espaços que antigamente eram negados a eles. “Estou inserido em um contexto de evolução social em que não existe problema em um negro ser o superintendente da Polícia Rodoviária Federal, presidente do Supremo Tribunal Federal (Joaquim Barbosa) ou qualquer que seja o cargo. Temos opções que nossos avós não tiveram”, enumera.

O policial acredita que a abolição da escravatura trouxe liberdade meramente formal, mas não viabilizou condições materiais aos negros. “Não tinham onde trabalhar, como se manter. Até hoje ainda temos reflexo disso. Mas não podemos cair no vitimismo. Tem que se batalhar. O importante é se saber que a cor da pele não deve ser determinante na vida das pessoas e que precisamos correr atrás dos nossos objetivos. Nos dias de hoje não importa mais a cor da pele e sim a capacidade de cada um”, finaliza.

GUILHERME ALMEIDA

O superintendente da PRF João Francisco Ribeiro de Oliveira entende que hoje os negros podem se qualificar, almejar ascensão social e ocupação de espaços que antes lhes eram negados

O delegado Cleiton Silvestre Munhoz de Freitas nasceu em Porto Alegre, em 1961, e foi vereador da Capital entre 2013 e 2016. Hoje é suplente na Câmara Municipal e presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul.
O delegado conta que nunca sofreu agressão racial direta, mas já passou por constrangimentos. “Se percebe a diferença na forma do tratamento, em algumas situações. És tu mesmo o delegado, me perguntam muitas vezes”, revela.

Cleiton lembra uma vez que estava com um agente policial loiro, de olhos azuis. “Fomos levar para o Ministério Público, para o juiz analisar, um pedido urgente de busca e apreensão. Fiz o pedido, liguei para o juiz, novo na cidade, no Interior. Disse ao juiz: ‘estou levando pessoalmente o pedido ao senhor para nos conhecermos, tenho visto o seu trabalho’. Quando cheguei com o agente, o juiz e o promotor foram direto para o agente de olhos azuis, o saudaram e começaram a falar com ele como se fosse o delegado. O agente tentava explicar que não era o delegado, e quando houve esse espaço e ele disse quem era, a reação de ambos foi meio constrangida, no sentido de se desculpar.”

Para Cleiton, os livros escolares não falam muito dos negros influentes. Ele cita Martin Luther King Jr., assassinado há 50 anos. No Brasil, Abdias do Nascimento, artista, dramaturgo, professor benemérito da Universidade do Estado de Nova Iorque. “Há muitos negros, mas falta reconhecimento. Veja, não há ruas com nome de negros, são raras, monumentos é quase zero.”

Cleiton foi autor do projeto que deu nome do viaduto que faz ligação da rua Pinheiro Borda com avenida Beira Rio de Abdias do Nascimento. “Quando propus o nome dele, grande parte das pessoas não o conhecia, nunca havia ouvido falar. E, no dia da inauguração do viaduto, faleceu o jogador, ídolo da torcida colorada, Fernandão.A mídia me criticou, torcida, articulistas de jornais pressionaram, fizeram pedido para que trocasse para o nome do jogador. Ouvi diz que Fernandão fez mais pelo Rio Grande que Abdias. Ouvi apresentador de programa, pessoa culta, dizer que eu havia colocado o nome só porque Abdias era negro. Eu liguei para ele e disse: ‘E é, trata-se de alguém importante, influente, dentro da cultura do Brasil, da história recente’. O apresentador se desculpou, mas seguiu defendendo outros nomes. Citou vários, nenhum negro.”

Na sua avaliação, a data da abolição deve ser comemorada, mas com ressalvas. “Acredito que na questão negra o 20 de novembro, data de Zumbi, guerreiro, é a mais importante. Mas não podemos ignorar datas que tentaram uma transformação. Não é a Lei Áurea, aquela assinatura que nos botou na rua e levou muitos a quererem voltar a ser escravos porque não tinham nada para comer”, afirma.

“Porém, tivemos atrás de tudo isso, da Lei Áurea, a luta de muitos abolicionistas, guerreiros, luta por direitos humanos, por igualdade, milhares que estavam indignados contra a escravidão. Fomos os últimos no mundo a sermos libertados. Mas muitos brancos e negros foram para a rua, botaram sua cara contra a escravidão. Então, por mais que se queira negar, o 13 de maio tem significado forte”, completa.

ALINA SOUZA

O delegado Cleiton Silvestre Munhoz de Freitas destaca que faltam negros nos livros escolares, falta reconhecimento

Medicina

A abolição recém-completara 34 anos e um negro conseguia se destacar, em 1922, em uma área que até hoje é quase intransponível para afrodescendentes. Luciano Raul Panatieri (1897-1972) se formava médico na Faculdade de Medicina de Porto Alegre (que hoje integra a Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Luciano nasceu em Artigas, no Uruguai, na fronteira brasileira com a cidade de Quaraí. Seus pais: Abrelina, uma negra uruguaia de Artigas, descendente de etíopes, e Santiago, um militar genovês que se instalara em Quaraí. Tornando realidade o sonho de se tornar brasileiro, Luciano, já adolescente, obteve em Porto Alegre a desejada certidão de nascimento como porto-alegrense, em 1912, e concluiu o curso secundário em 1916.

No ano seguinte, ingressou na Faculdade de Medicina como bolsista da Santa Casa de Misericórdia. Para se manter nos estudos, passou no concurso para o Tesouro do Estado, sendo promovido a oficial por merecimento. Após a formatura, em 22, prestou concurso para o serviço médico do Exército, servindo em Bagé, Piquete (São Paulo), e em Rio Pardo, onde decidiu se radicar a partir de 1930, quando deu baixa no Exército.

Pois três de seus descendentes seguiram o mesmo caminho, formando-se médicos. Os filhos Romeu de Souza Panatieri (falecido aos 78 anos), Romulo Angelo de Souza Panatieri, hoje com 84 anos, e o neto Ramiro Tarantino Panatieri, filho de Romeu, atualmente com 61 anos.

Adriana Vieira Leal / Divulgação

Romulo, hoje com 84 anos, é filho do primeiro médico negro do Estado, Luciano Raul Panatieri, e seguiu a profissão do pai

Exercendo a medicina há exatos 57 anos, Rômulo, formado na Ufrgs em 1961, não passou incólume pelo preconceito racial, embora tenha tido uma infância e adolescência sem problemas. Nascido em Rio Pardo, veio residir em Porto Alegre aos 7 anos, onde estudou no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o tradicional Julinho. “Tinha amigos brancos, pois o universo era de brancos. Porém nunca fui discriminado.”

Isso viria a acontecer apenas na faculdade. “Na formatura de medicina, percebi que havia preconceito com o idoso e com o negro, pois havia um colega de idade avançada concluindo o curso e eu, negro. Fomos quase ovacionados. Foi quando senti que havia diferença e espanto nas pessoas”, conta.

O médico recorda ainda o início da carreira. “Recebi algumas rejeições. Havia pessoas que não queriam ser atendidas por um negro, chegando a verbalizar isto. Na cidade onde me estabeleci, não podia frequentar a sociedade recreativa. Fui convidado para ser paraninfo de uma turma e houve tentativa de impedimento de minha entrada no baile. A lei Afonso Arinos já vigorava e o promotor de Justiça fez cumpri-la. Desta maneira fui receber a homenagem. Ainda assim, não podia frequentar os bailes desta sociedade nem do Centro de Tradições Gaúchas”, lamenta.

Ele viu ainda os filhos sofrerem. “Meus filhos foram agredidos verbalmente pelos colegas de escola. Foi em Piratini que vivi as manifestações de preconceito racial que até então desconhecia.” Rômulo acredita que a ausência de negros em cargos de importância no Brasil são causados pela falta do acesso à formação acadêmica. “Isso é resultado da compreensão histórica de que o negro está para o serviço braçal, construída para justificar a escravização.”

Ao verificar os 130 anos da abolição, o médico acredita que os negros “conquistaram o direito de ser reconhecidos como cidadãos. Esta conquista resulta de nossa consciência e resistência, que forjaram o reconhecimento de nossa capacidade de pensamento, sentimento e ação.

Neste processo, fomos construindo a garantia de acesso aos serviços de educação, saúde que nos garantiram vida com mais qualidade” Porém, Rômulo tem ressalvas em relação ao 13 de maio. “Houve a negação da existência da escravização quando queimaram toda a documentação de entrada e negociação dos escravizados, apagaram nosso passado. Além disso, a Lei Áurea não projetou futuro aos recém-abolidos, pois não se previu a possibilidade de esses indivíduos terem terra para trabalhar, possibilidade de iniciar algum negócio, possuir casa, ter acesso à educação formal”, finaliza.

Fernanda L. Gehrke / AB Produção

Também o neto Ramiro, hoje com 61 anos, adotou a medicina como profissão

Em contraste, o sobrinho Ramiro Tarantino Panatieri, Formado pela Universidade Católica de Pelotas em 1986, garante ter passado longe do preconceito racial. Especializado em ginecologia e obstetrícia como o avô Luciano e o pai, Romeu, Ramiro conta ter tido infância e adolescência com amigos de todas as raças e condições sociais. “Nunca tive problemas, talvez pelas condições sociais dos meus pais e avós.”

O médico, que atua em Rio Pardo e nas cidades de colonização alemã Vera Cruz e Santa Cruz do Sul, acrescenta que o sistema de cotas ajuda a compensar o atraso e a má qualidade das escolas públicas. “Meu avô, meu pai, meu tio e eu não tivemos a oportunidade das cotas, mas tivemos um bom ensino, apesar de termos estudado em escolas públicas”, recorda.

Para acabar com o racismo, busca inspiração nas palavras do ator norte-americano Morgan Freeman. “De acordo com ele, no dia em que pararmos de nos preocupar com consciência negra, amarela ou branca e nos preocuparmos com a consciência humana, o racismo desaparece”.

Fonte: Correio do Povo – edição do dia 11.05.2018

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.