Jorge Terra

24 de setembro de 2018

De Porto Alegre à Lagoa Vermelha

A cada dia mais se reforça a obrigação da União, dos Estados, dos Municípios, dos estabelecimentos educacionais privados e da sociedade implementarem e fiscalizarem o cumprimento do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Precisamos entender, com brevidade, o que já está no texto original dessa basilar legislação (veja os artigos 26 e 27): todas as histórias e culturas são importantes para nosso desenvolvimento civilizatório.

O predomínio de uma visão eurocêntrica, a desvalorização e o rebaixamento de outras culturas tem efeitos concretos graves. Nesse cenário, o nível de mortalidade de jovens negros, o nível de desempregabilidade, as diferenças salariais em razão da raça das pessoas (veja dados da extinta FEE, do DIEESE e do IPEA), o descumprimento de todos os artigos do estatuto de igualdade racial (olhe o artigo 40 e o parágrafo 3º do 39), a ineficácia das leis referentes aos crimes raciais e o fato de o projeto de lei que trata do novo código penal ter sido apresentado pela Presidência do Senado sem previsão de pena para o crime de racismo não parecem gerar aflição sequer nos órgãos governamentais responsáveis pelas políticas de igualdade racial no Brasil. Se assim é ou parece, menor seguramente é a pressão sobre a estrutura dos entes federativos, constituídos por pessoas, na quase totalidade das vezes, despreocupadas com o combate aos efeitos de uma longa escravização e de uma abolição realizada sem planejamento e sem ações reparatórias.

Também estão nesse quadro, o revigorado e já longínquo desacreditar da cultura nativa, a indígena, como se tivesse que assim  fazer para lhes tomar as terras no passado e no futuro. Antes, o discurso era racial com apoio de uma visão religiosa, hoje sobressai o aspecto econômico. Por um ou por outro caminho, chega-se à exclusão e ao ataque às condições de sobrevivência física e cultural dos indígenas brasileiros.

Nesse sentido, misturando desconhecimento histórico, inabilidade artística, preconceito e desrespeito cultural, aportam dois fatos a não esquecer: um no Município de Porto Alegre e outro no Município de Lagos Vermelha. Em Porto Alegre, dos cerca de 370 piquetes instalados no acampamento farroupilha montado em zona central do município, dois (2) fizeram referência aos Lanceiros Negros: um piquete vinculado aos Lanceiros Negros Contemporâneos e o vinculado à organização Mocambo. Além desses, dentre os numerosos existentes, somente outro fez referência à história dos negros no Rio Grande do Sul ao tratar do tema tropeirismo (tema central da edição do ano de 2.018 do acampamento farroupilha).

Esse piquete optou por abordar o tema constituindo um espaço no qual reproduzia uma senzala, tendo duas bonecas negras representando mulheres acorrentadas e em posição de serem açoitadas. Deixa-se aqui de exemplificar quadros que muito provavelmente gerariam ofensas a outros segmentos da população atual do Rio Grande do Sul e do Brasil, confiando que, ao menos por empatia, pode-se vislumbrar o que sentiu parte da comunidade negra ao acessar as imagens da instalação. O fato é que, assim agindo, os gestores do piquete estariam, ao seu ver, rendendo homenagem aos Lanceiros Negros, que eram homens, colocando as imagens de mulheres negras em pelourinhos. Não é crível tal versão.

Uma vez que, indevidamente, o piquete violador afixou placa referente a programa do Município voltado ao turismo, entrou-se em contato com a Municipalidade que, prontamente, retirou a placa e gestionou aos dirigentes do Movimento Tradicionalista Gaúcho que o espaço fosse fechado.

Posteriormente (cerca de dois dias), houve a reabertura do espaço já não mais com a inadequada senzala, mas com instalação decorrente de consulta ao conselho de direitos do Município de Porto Alegre relacionado à causa negra.

Agora, exsurge a informação de um desfile temático com a presença de crianças no Município de Lagoa Vermelha. O vídeo assistido tinha apenas 31 segundos. Nesse período de tempo, viram-se crianças e adultos brancos com indumentárias tradicionais e uma criança negra sem camisa e acompanhada por outra pessoa branca que estava a empunhar um chicote. Essa criança negra, inclusive, tinha riscos de tinta vermelha às costas como se houvesse sido açoitada.

A entidade desfilante e os organizadores do evento não foram sensíveis a ponto de pensar naquela criança moradora de uma cidade pequena e em sua convivência comunitária, tampouco nas outras, negras ou brancas, que veriam o desfile ou as respectivas filmagens. Sabe-se que pessoas tem preconceitos de diferentes naturezas. Todavia, essas preconcepções, geradoras de vieses, devem ser controladas pelas próprias pessoas, em especial quando se está na posição que os responsáveis pela escola e pelo evento estavam e estão. Se esse autocontrole inexistir ou inocorrer, cabem as buscas pelas atuações do Conselho de Educação, do Conselho da Criança e do Adolescente, do CODENE, do Conselho Tutelar, da OAB, da Defensoria Pública, da Subseção da OAB e da Comissão de Direitos Humanos da PGE .

Essa noticiada violação é mais grave do que a primeira, pois envolve diretamente crianças e afronta diretamente o artigo 227 da CF/88 que assim dispõe:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Agora, há dois caminhos a seguir: 1) a apuração das responsabilidades pelos dois fatos ocorridos. No que diz com o que aconteceu em Porto Alegre, há quem diga que a responsabilidade seria exclusivamente do piquete e há quem diga que também seria da secretaria municipal da cultura e do MTG, uma por ter recebido projeto previamente e ambos por não terem fiscalizado, já que, até o fechamento temporário do espaço no qual estava a instalação, a exposição esteve aberta ao público por cerca de 9 dias.  No que pertine ao ocorrido em Lagoa Vermelha, ao que se sabe, no dia de hoje será acionado o Ministério Público por meio do Promotor de Justiça lá lotado. 2) a apuração mencionada não é o bastante: o Movimento Tradicionalista Gaúcho deve pensar e anunciar forma de reparação imaterial à população negra gaúcha e brasileira.

Ideias  há, sendo suficiente pedir sugestões, gerar processos de pesquisa e método de verificação prévia sobre o trabalho a ser apresentado à sociedade.

 

Jorge Terra

Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/RS

Comissão de Direitos Humanos da PGE/RS

 

 

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